Era o começo dos Anos 60, o movimento dos Direitos Civis ainda engatinhava em boa parte dos EUA, no Sul principalmente a rejeição era imensa e segregação racial era algo real e legal. Negros e Brancos eram separados sempre que possível, de bebedouros a bares, e isso gerou um problema para Hugh Hefner.
O criador da Playboy era meio ingênuo, por isso topou abrir uma franquia dos Clubes Playboy em New Orleans, e isso voltou para morder sua mão. Os clubes eram locais exclusivos onde os sócios usavam suas chaves especiais e assistiam a shows, concertos, bebiam, networkavam e eram servidos por coelhinhas altamente treinadas, inclusive proibidas de manter qualquer contato inapropriado com os clientes. Hefner mandava detetives para tentar seduzir as coelhinhas de vez em quando e garantir que andavam na linha. Clientes abusados eram expulsos, mas o problema era outro.
Clientes de outros Estados estavam chegando no Clube Playboy da cidade e sendo barrados, com o argumento de que eram… negros. Hefner tentou argumentar, os donos mostraram que eram legalmente autorizados a segregar o estabelecimento. Sem opção, Hugh Hefner puxou o talão de cheque e comprou o clube de volta. Imediatamente o acesso passou a ser liberado para todos os sócios.
Que qualquer Clube Playboy nos Anos 60 aceitasse negros hoje soa como surpresa, mas na época era algo que qualquer um familiarizado com Hugh Hefner acharia natural. Ele era um sujeito completamente fora da curva, hoje é hostilizado como sexista, machista porco esTRUpador, bla bla bla, mas o verdadeiro Hugh Hefner e a Playboy foram fundamentais para os movimentos sociais nos anos 60/70.
Hefner era um caso raro na época, uma mentalidade avançada nas questões sociais E CEO de uma empresa bem-sucedida. Ironicamente ele perdeu dinheiro com isso. O público em sua maioria não gostava de mensagens progressistas, e consequentemente os anunciantes também não. E por mensagem progressista eu digo reconhecer que EXISTEM pessoas “diferentes”. Por isso o grande Nat King Cole foi demitido da NBC, não havia anunciantes.
Isso não impediu Hugh Hefner de bancar seus dois programas, Playboy’s Penthouse e Playboy After Dark, vendidos para emissoras de todo o país, com exceção de várias estações do Sul, que se recusavam a divulgar aquele absurdo, e por absurdo em digo um programa que mostrava festas no que seria a cobertura de Hefner, onde convidados negros e brancos se divertiam, e até dançavam juntos, interracialmente. Brrr…
Para piorar era comum a presença de atrações negras, como Gregory Hynes, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughn, Marvin Gaye e muitos outros. Inclusive gente que não era preta ou branca, mas da pior cor possível: vermelha. Artistas na Lista Negra do Senador McCarthy eram rotineiramente convidados. Ronald Reagan chegou a mandar uma carta pedindo que Hefner parasse de chamar esses indesejáveis, como o comediante Lenny Bruce. Hefner chegou a ser preso por levar Bruce no programa.
Hefner sabia que irritava alguns consumidores, mas no fundo isso servia como filtro para manter longe dos clubes e da revista gente que não se alinhava com os ideais da revista, gente que se incomodava com isto:
Coelhinhas negras sempre foram contratadas para trabalhar nos clubes, as aí de cima são de Chicago. E a disputa era imensa, era ótimo negócio ser coelhinha, o salário era bom, o ambiente de trabalho era quase militar em sua organização. Sharon Peyton foi coelhinha em um dos clubes, e conta que lá aprendeu tudo sobre organização e qualidade de serviço, conhecimentos que aproveitou quando abriu seu próprio nightclub tempos depois.
Além das coelhinhas visíveis, a Playboy também era conhecida por empregar um número fora do normal de mulheres, em uma época onde o normal era um ambiente Mad Men, e não eram empregadas só como secretárias. Hefner não tinha problemas em colocar mulheres em postos de alta responsabilidade, inclusive esta senhora aqui:
Ela se chama Zelda Wynn Valdes, designer e estilista, responsável por uma das imagens icônicas da cultura pop, a fantasia de coelhinha usada pelas playmates e recepcionistas dos Clubes Playboy.
Na revista Hefner tentava aplicar sua visão inclusiva, dentro dos limites do real, pois senão a Playboy fecharia. O público não estava preparado para um choque cultural, mesmo assim a primeira Playmate negra apareceu em 1965. Para dar uma idéia de como isso foi ousado socialmente, a Sports Illustrated só foi ter uma negra na capa, a Tyra Banks, em 1994.
Mesmo nos textos Hefner ousava. Entre os números 2 e 4 da revista publicaram Farenheit 451, de Ray Bradbury. Matérias sobre direitos civis, racismo, liberdade de expressão eram rotineiramente publicadas. Em 1955 a revista publicou um conto de ficção científica rejeitado pela Esquire por ser polêmico demais, “The Crooked Man,” de Charles Beaumont.
Na história uma sociedade onde a norma era todos os homens sendo gays excluía e perseguia héteros, que se encontravam em clubes secretos e viviam à margem da sociedade. Um monte de leitores escreveu reclamando. Ao contrário das empresas bananas de hoje em dia Hefner não pediu desculpas. Publicou uma nota defendendo o conto e dizendo que se parecia tão errado assim perseguir héteros, talvez fosse errado fazer o mesmo com gays.
A Fundação Playboy, criada em 1965 foi pioneira em bancar custas de processos envolvendo aborto e uso de anticoncepcionais, que eram proibidos em alguns Estados. Certa vez Hefner recebeu uma carta de um Disc Jockey cumprindo uma pena de 12 anos de prisão. Motivo: Antes de um show um fã praticou fella felacc pagou um boquete, foram flagrados e enquadrados em Leis contra Sodomia.
Sim, hoje em dia a gente dá verba federal de pesquisa pra quem quiser chupar pirocas em banheiros públicos, mas nos Anos 50 era cadeia, sem dó. Hefner não concordava, colocou a Fundação Playboy em cima e conseguiu que o sujeito fosse solto, e as Leis anti-sodomia acabaram caindo.
A posição progressista da Playboy fica evidente já na primeira entrevista, em 1962: Miles Davis. Hefner amava Jazz, amava talento e não tinha tempo pra se preocupar com a cor do tal talento. Isso desencadeou uma série de entrevistas que se tornaria lendária. A piada de que se comprava Playboy por causa das entrevistas era, no fundo, verdadeira.
E não eram entrevistas chapa-branca com artistas da moda. Em 1963 foram entrevistados pela Playboy Malcom X e Jimmy Hoffa, e na edição de Dezembro, Albert Schweitzer, o cientista. Outros nomes que passaram pela revista:
- Vladimir Nabokov
- Ayn Rand
- Salvador Dali
- Muhammed ALi
- George Wallace
- Ian Fleming
- Martin Luther King, Jr
- Jean-Paul Sartre
- Fidel Castro
- Orson Welles
- Truman Capote
- John Kenneth Galbraith
- Ralph Nader
- Stanley Kubrick
- Marshall McLuhan
- Gore Vidal
- Jesse Jackson
- Buckminster Fuller
- Kurt Vonnegut, Jr
- Erica Jong
Só alguns, e só até 1975, cansei de ler listagens.
Muitas dessas entrevistas foram feitas por Alex Haley, que mais tarde produziria clássicos como o livro e depois série Raízes. Haley fez a primeira entrevista da Playboy, com Miles Davis, conseguiu a maior entrevista que Martin Luther King, jr deu a qualquer veículo e sozinho elevou o padrão do jornalismo “entrevistativo”.
Um de seus momentos mais tensos foi quando entrevistou para a Playboy George Lincoln Rockwell, líder do partido nazista americano. O sujeito deu a entrevista com uma arma em cima da mesa, mas isso não intimidou Alex, veterano da Segunda Guerra Mundial. Ele já começou chutando a porta:
“Eu já fui chamado de nigger antes, desta vez estou sendo bem pago pra isso, então vá em frente e diga por quê nos odeia.”
A Playboy é sinônimo de revista de mulher pelada, mas essa é uma visão simplista. Quando ela foi criada sexo era basicamente proibido, algo feito entre quatro paredes, digno de vergonha. Hugh Hefner trouxe o erotismo para a luz, apresentava mulheres com nome e sobrenome e uma incrível predileção por longos passeios na praia. A preocupação com o prazer feminino era constante nos artigos, o homem bem-sucedido era o que sabia agradar. A Revolução Sexual deve muito à Playboy, pois de nada adianta mulheres liberadas se os homens continuam trogloditas.
Quanto a Hugh Hefner, que faleceu ontem aos 91 anos, ele fez muita coisa errada na vida, mas também muita coisa certa. Ele tinha um DC-9, o Big Bunny:
Ele era usado primariamente para consumir coelhinhas, mas com o desastre do final da Guerra do Vietnã os EUA começaram a Operação Babylift, transportando milhares de órfãos recém-nascidos para os EUA. Hugh Hefner disponibilizou o avião, que fez parte do esforço conjunto. Pelo menos duas gerações estão vivas por causa dele.
A Internet está cheia de ódio gratuito contra Hugh Hefner, e espero sinceramente nunca descer tanto em uma espiral de desumanidade que eu fale isso de um senhor de 91 anos:
A Playboy conseguiu glamourizar e tornar invejável a mulher que posava nua, algo que mesmo hoje é visto meio de lado. O título de playmate era ostentado com orgulho, isso é o oposto de objetificação. Isso é humanização, e nem vou entrar na parte em que a Playboy publicou ensaios com modelos transsexuais.
A postura progressista da revista era às vezes controversa mesmo internamente. Em 1987 publicaram um ensaio com Ellen Stohl, uma modelo paraplégica. Isso gerou uma briga imensa na redação, vários editores, muitos deles mulheres, foram contra, achando que pareceria um show de bizarrices. A decisão final foi de Hugh Hefner.
A própria Ellen Stohl relembra:
“Hef foi inflexível , eu tinha o mesmo direito de expressar minha voz sexual quanto mulheres sem deficiências”
Hugh Hefner é facilmente odiado e invejado, mas assim como sua revista, há muito mais do que o conteúdo superficial, é só uma questão de saber e gostar de ler. Agora ele nos deixou, e eu temo por seu destino. Se sua alma pesar mais que uma pena, ele achará as festas no Inferno coisa de amadores, e se for pro céu morrerá de novo, de tédio.
A mim só resta agradecer. Por ensinar gerações a idéia de sexualidade saudável e positiva, por ensinar que mulheres bonitas podem e devem ser apreciadas mas se você não as tratar com respeito você é um merda, por toda uma vida defendendo direitos civis e avanços sociais mas principalmente, obrigado Senhor Hefner por uma certa capinha em Dezembro de 1987.