Filhos da Lua

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Pai, Mãe, vocês estavam errados.

Eu não sei se vocês vão abrir esta videomensagem, eu sei que nós não nos falamos mais, sei que nunca mais nos veremos e nunca mais vamos nos abraçar, mas por favor, entendam: Tudo que eu fiz foi por nossa família.

Lembro como a Mãe chorou quando rompi com as velhas tradições, mas os tempos mudaram. Não conseguiria viver me escondendo, com vergonha do mundo ao mesmo tempo fingindo que somos um grupo nobre e incompreendido. Eu não quero e não vou aceitar nosso destino, desde criança eu já me rebelava, não iria mudar depois de adulto.

Por isso eu fiz tanta coisa escondida, por isso eu trabalhei nos vizinhos, juntei dinheiro para comprar os livros que os professores da escola que vocês não me deixavam frequentar me recomendavam. Isso mesmo, o velho Professor Helsing, -que o solo seja gentil sobre seus ossos- me viu espiando as aulas pela janela e quando descobriu quem eu era, fez o que quase ninguém havia feito: entendeu minha situação e me mostrou que era possível contorna-la.

Eu estudava em casa, escondido enquanto vocês achavam que eu estava caçando. Todo problema tem uma solução, mesmo os insolúveis, e nossa família era um imenso nó Górdio.

Passei anos tentando entender a origem de nosso problema, mas é o mesmo que entender por quê nossos antepassados pararam de passar mal por beber leite. O mecanismo é mais que conhecido, posso explicar facilmente as seis mutações básicas do gene MCM6 e como isso levou à domesticação de gado, aumento do suprimento de alimentos para crianças pequenas e como a civilização humana se consolidou aí.

Eu só não posso explicar o motivo, e levei bastante tempo para entender que do mesmo jeito o problema da nossa família não tem um motivo, ele é, ele existe, apenas isso.

O que não quer dizer que eu tenha que gostar disso, e mesmo quando nossa digamos assim doença começou a se manifestar, eu continuei a pesquisar. Consegui meu diploma através de cursos à distância e então empaquei, sem saber qual carreira seguir, até que um dia eu tive uma revelação, vinda de uma grande bobagem, a homeopatia. Talvez, apenas talvez aquela história de que o veneno seja eu próprio antídoto neste caso se aplique.

Foi nesse dia que eu avisei que iria me matricular na LMU Munich.

Eu sei que deixei todos muito tristes, mas eu não quero ser mais um dos esquisitos da fazenda da montanha, que só vão para a cidade comprar mantimentos uma vez por mês, não falam com ninguém e são alvos de um monte de histórias. Mesmo elas sendo verdadeiras.

Nossa cidade era muito pequena, mas nossa mente era menor ainda, e eu sabia que havia todo um Universo além de nossas cercas, um Universo governado por Ciência, não por superstição ou velhas lendas e tradições.

Nosso gado não morre mais de doenças simples, nossas feridas não mais infeccionam, não precisamos mais acompanhar estrelas para saber o dia do mês ou as fases da Lua. Quando temos nossas crises não mais saímos correndo violentos e perigosos pelas ruas, nos preparamos com excelentes remédios que se não nos curam, ao menos nos controlam, embora eu duvide que o Dr Leo Sternbach tenha criado o Rohypnol pensando na nossa condição. Ao menos não constamos na bula.

Graças a essa e outras drogas eu consegui passar pela faculdade, pela pós e pelo meu doutorado sem nenhum incidente. Viram? Todos aqueles alertas contra drogas estavam errados. Calma mãe estou brincando.

Nesse ponto da minha vida eu agradeço nossa família ser diferente. Nossa saúde sempre foi de ferro e nossas habilidades físicas são invejáveis. Passei com nota máxima em todos os testes para astronauta, incluindo os psicológicos, o que me surpreendeu um pouco dada nossa vocação de ser meio bicho do mato, mas aprendi muito sobre socialização na faculdade, principalmente com Sabine.

Vocês não a conhecem, mas acreditem, é uma ótima moça. Nunca a tentei apresentar, sei que vocês não aceitam que a gente se relacione fora da família estendida, mas eu não tenho o menor interesse em casar com a Prima Ingrid ou a Prima Bertha, Sabine é linda, mais inteligente do que eu e se candidatou ao mesmo programa. Se estou onde estou hoje, foi literalmente graças a ela, Sabine foi minha piloto.

Ela sabe da minha condição. Corri o risco de demonstrar como fico se não tomar a medicação, do contrário ela não acreditaria. Nesse dia eu tinha certeza de que iria perde-la, mas a danada me encheu de perguntas, metade das quais eu nunca havia pensado e na maioria dos casos nem tinha respostas. Ela se tornou minha cúmplice e aprimorou meu plano final.

Agora eu estou dentro do fruto de nosso trabalho. Nós fomos uma parte pequena mas importante na construção da Colônia Lunar Européia, meus esforços para sintetizar materiais usando o regolito lunar foi fundamental para tornar viável a construção dos primeiros habitats em cavernas artificiais, e mais tarde, do Grande Domo.

Pode ficar orgulhosa, mãe, seu filho fez um excelente trabalho e sua nora desenvolveu toda uma infraestrutura de drones que percorrem a superfície lunar atrás de meteoritos carboníferos, que usamos para produzir tudo, inclusive comida e adubo para as estufas. Por enquanto não temos animais, e sim, Pai, desculpe pelo desgosto de ter um filho vegetariano, mas uma vez por mês, a um custo muito alto eu como um bom filé, principalmente para me livrar das piadas de Sabine sobre a ironia da situação.

O que não é irônico, mas sublime é que hoje pela primeira vez não tomei meus remédios. Estou de pé, abraçado a Sabine, olhando pela janela de nosso minúsculo apartamento. Além do Grande Domo de cristal ergue-se a Terra, majestosa. Com um bom par de binóculos consigo distinguir os continentes, inclusive nossa amada Europa e minha para sempre distante Bavária.

Eu sei que vocês e outros de nossa família estão olhando aqui para cima, preocupados afinal é mais uma Lua Cheia, mas a minha grande hipótese foi comprovada: A maldição de nossa família não é imune à Ciência. Não podemos ser afetados pela Lua Cheia quando estamos morando na própria Lua.

Por séculos fomos condenados a assumir formas animalescas e correr uivando pelos campos iluminados pela Lua Cheia. Não mais. Não importa a origem de nossa maldição. Se ela nos negou as noites de Lua, a Ciência nos ofereceu o resto do Universo.

Com todo meu amor,

Peter Wolfsohn

Base Clavius, 26/7/2056

 

 

 

 

 

 



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