O dia em que Lois Lane fez Blackface! Millenials podem chilicar, o resto clique que é legal.

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Enquanto a lacrosfera celebra a primeira vez (excetuando-se todas as outras) que uma mulher estrela um filme de super-heróis, no mundo dos quadrinhos as mensagens progressistas são bem mais antigas, no nosso caso com praticamente 50 anos, mas tudo que os progressistas modernos verão é o terrível pecado do blackface.

O Blackface nos Estados Unidos surgiu no Século XIX, foi muito usado no teatro de variedades e era basicamente um ator branco (já que negros não eram aceitos) maquiado de forma caricata para representar personagens negros, geralmente de forma humorística e exagerada.

Hoje Blackface é considerado algo de extremo mau gosto e acaba com a carreira de um ator, mas ironicamente a imagem mais icônica da prática, Al Jolson no filme “O Cantor de Jazz”, o primeiro filme falado, não tem nada de caricatura ou comédia.

No filme Al Jolson é um jovem judeu lutando por uma carreira musical, seu uso do blackface simboliza as dificuldades de duas minorias, negros e judeus. Fora das telas, Jolson costumava se apresentar de blackface, trazendo para o público branco a então segregada música negra.

Jolson popularizou Jazz, Blues, Ragtime e outros ritmos, trouxe canções de negros do Sul dos Estados Unidos para Nova York. Ele promovia peças de teatro, inclusive o primeiro musical da Broadway com elenco todo negro.

Ele exigia tratamento igual quando se apresentava com músicos negros, e era visto frequentemente cercado de amigos igualmente negros. Certa vez ele leu que dois compositoros, Eubie Blake e Noble Sissle haviam sido expulsos de um restaurante por serem negros. Jolson não os conhecia, mas conseguiu encontrá-los, e os levou para jantar, dizendo que iria “socar o nariz de quem tentasse expulsá-los de algum lugar”.

Jolson, odiado pelos Iluminados modernos era adorado pela comunidade negra, seus filmes levavam a música deles para os grande público, e suas atitudes no dia-a-dia o diferenciavam dos progressistas de fachada, que eram simpáticos mas não conviviam com “gente de cor” fora dos holofotes.

Quando Al Jolson morreu seu cortejo foi acompanhado por um monte de atores negros, inclusive por Noble Sissle, que era então presidente da Liga dos Atores Negros.

Hoje em dia blackface perdeu a contextualização, o que é péssimo, pois limita a criatividade dos contadores de histórias. Bem usado o blackface pode ser um excelente elemento em histórias com mensagens anti-racistas, como na história “I’m a Curious (black)!”, publicada em Novembro de 1970 na revista Superman’s Girl Friend, Lois Lane Vol 1 106.

O título é uma referência a dois filmes suecos, I Am Curious (Yellow) de 1967 e I Am Curious (Blue) de 1968, ambos polêmicos adultos e bem eróticos, uma piada particular do roteirista Robert Kanigher, que viria a se tornar um dos grandes nomes dos quadrinhos.

Kanigher criou entre outros os quadrinhos do Sargento Rock, a Canário Negro, o Esquadrão suicida e muitos outros, editou por muitos anos histórias da Mulher Maravilha. Um dos títulos que Kanigher trabalhou foi Superman’s Girl Friend, Lois Lane, um tributo à popularidade do personagem, afinal a revista da namorada do Super-Homem foi editada de 1958 a 1974, 137 edições. Poucos títulos hoje em dia chegam a esses números.

Um dos segredos do sucesso da série e do trabalho de Kanigher era que ninguém vivia alienado, a idéia de quadrinhos como escapismo é uma visão de quem não se dá ao trabalho de ler as histórias. As edições memoráveis em geral tratavam de temas da atualidade, disfarçados com metáforas literárias ou às vezes explicitamente, como no caso dessa história.

O Começo

Lois Lane, marrenta como sempre decide fazer uma matéria sobre a Little Africa, o bairro negro de Metrópolis, mas chegando lá ela é tratada com desconfianças, as pessoas nem querer falar com aquela desconhecida.

Lois só consegue falar com uma velhinha, e percebe que só foi possível por ela ser cega e texto de quadrinhos não passar sotaque. Mais adiante ela encontra um líder comunitário fazendo um discurso, que a vê passando e aponta para Lois:

“Olhem para ela, irmãos e irmãs, ela é jovem, doce e bonita mas nunca se esqueçam, ela é uma branquela! Ela vai nos deixar lustrar seus sapatos e varrer seu chão, e cuidar de seus filhos, mas ela não quer nossos filhos em suas escolas brancas, é OK para ela que nós vivamos nessas favelas infestadas, se não nos mudarmos para a casa ao lado dela. Por isso ela é nosso inimigo!”

Encontrando o Super-Homem, Lois conta o que aconteceu, e pede ajuda. Ele a leva para a Fortaleza da Solidão, onde ela convence Kal-El a usar uma máquina de transformação, da qual ela sai uma versão negra de si mesma.

De volta a Metrópolis, Lois está disposta a entender a questão negra vivendo literalmente na pele, mas não estava preparada para algo tão contundente. De cara no meio de uma chuva repentina ela é ignorada pelo taxista simpático que sempre a levava para todo lugar.

“A cor do meu dinheiro não é boa o suficiente”

No metrô ela percebe que é alvo de olhares constantes, e não consegue entender o motivo.

“Eu sou a mesma pessoa de antes, só minha pele que é negra”

Lois entra em um dos prédios caindo aos pedaços, e conhece uma moradora, mãe solteira, com filho desempregado, vivendo na miséria, mas simpática, acolhendo a jornalista e oferecendo a ela o pouco café que tinha.

“Eu não perguntei quem você é ou por quê está aqui! Como posso te ajudar, irmã?”

Lois mal acredita.

“Ela vive em miséria, mas pergunta se pode ME ajudar!”

Descendo a rua Lois encontra Dave Stevens, o ativista de antes, dessa vez ele é simpático e quase joga uma cantada, mas é interrompido quando percebe um grupo de adolescentes em um beco.

Eles estão encontrando dois traficantes, eles convencem os garotos a cometer pequenos crimes para pagar seu vício em drogas. Stevens tentar intervir mas é baleado. Por sorte o Super-Homem está por perto, derrete as armas com sua visão de calor e leva Dave e Lois para um hospital próximo.

No hospital Stevens precisa de uma transfusão, mas o hospital do bairro negro não tem verba pra manter estoque de todos os tipos de sangue. Por sorte Lois é O- e se oferece como doadora. Enquanto Stevens repousa da cirurgia, Lois e Clark conversam, ela pergunta se ele casaria com ela se a transformação fosse irreversível, uma outsider no mundo do homem branco.

Clark acha um absurdo a pergunta, ele lembra que é um alienígena de outro planeta, muito mais outsider do que qualquer um, e a pele dele nem é humana, “é mais dura do que aço”. Ao que Lois responde:

“Sim, mas sua pele tem a cor certa”.

Clark desconversa, mas nessa hora o efeito da transformação passa. Lois fica com medo de encontrar Stevens, afinal da última vez que se viram ele disse que ela era o inimigo. Clark e convence dizendo que se ela não o encontrar nunca saberá, e se ele continuar a odiar com seu sangue em suas veias, talvez nunca haja paz no mundo.

Na última página da história Lois entra no quarto de Stevens, que se assusta, a reconhece, como branca e como negra, sorri e estende a mão.

A história é simples e didática, contundente dentro das limitações da época, quando as histórias eram limitadas pelo famigerado Comic Code Authority.

Esse conjunto de regras proibia violência explícita, drogas, temas controversos, vampiros e lobisomens eram vetados, figuras de autoridade não deveriam ser mostradas de forma desfavorável, então nada de policiais corruptos, políticos desonestos e similares. A “santidade do casamento” deveria ser exaltada e decotes eram proibidos. Mesmo assim Robert Kanigher contou sua história.

Graças a ele todo um público de crianças e adolescentes brancos de classe média tiveram um raro vislumbre do dia-a-dia da população negra, visto pelos olhos de uma personagem querida. Não é sutil, não é metafórico, é tão tapa na cara quanto possível.

Quadrinhos sempre foram vistos como uma arte menor, mas eles continuam inspirando e entretendo geração após geração, e se hoje há títulos que perderam a mão, a culpa não é do formato. Não é nem da mensagem direta, e sim do discurso de ódio disfarçado de discurso social.

Lois Lane foi a primeira a reconhecer que havia entre os brancos muitos que repetiam o discurso racista, mas ela em momento algum se penitenciou por algo que não praticava. No final todos aprenderam, sem ódio nem culpa.

De resto, pra encerrar de vez a história de que quadrinhos só agora discutem temas sociais, temos este pôster anti-bullying de 1949, onde o Super-Homem ensina que os Estados Unidos são feitos de americanos de muitas origens, raças e religiões, e atacar alguém por isso é ser… anti-americano.

Hoje em dia isso seria discurso de comunista, claro. Ainda bem que o Senador McCarthy deixou escapar essa.


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