Nellie Bly – uma Lois Lane que nunca precisou de um Super-Homem pra se garantir

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Hoje o jornalismo está tomado por mulheres, nos EUA somente 1/3 dos formandos são homens, no Brasil as assessorias de imprensa são um imenso clube da Luluzinha, nomes como Sandra Passarinho, Christiane Pelajo, Leilane Neubarth, Christiane Amanpour, Zelda Scott e tantos outros são parte do nosso dia-a-dia, mas nem sempre foi assim.

Houve uma época em que uma mulher saber escrever já era desperdício de escola, que dirá trabalhar com isso profissionalmente. Foi nessa época, em 1864, que nasceu Elizabeth Jane Cochran.

Seu pai teve 10 filhos no primeiro casamento e mais 5 no segundo, incluindo Elizabeth, ou seja: Mesmo que ele tivesse deixado uma enorme herança quando morreu quando ela mal tinha 6 anos, na divisão não sobraria muito.

Viúva, sua mãe se casou de novo mas logo se divorciou, e a família foi viver em Pittsburgh em condições miseráveis, mas Elizabeth continuou estudando, na escola e em casa e queria de qualquer jeito trabalhar escrevendo.

Nem ela nem a mãe conseguiam arrumar empregos, Elizabeth diariamente via a dificuldade para mulheres no mercado de trabalho, que estava apenas começando a aceitar mão de obra feminina. Eis que para enfiar o dedo na ferida, um jornal, o Pittsburgh Dispatch publica um artigo de título “Para quê servem as garotas”, defendendo que mulheres servem basicamente para ter filhos e cuidar da casa.

Elizabeth ficou PUTA, e tal qual suas contemporâneas de hoje em dia, fez um textão, mas logo perdeu a paciência esperando o Facebook ser inventado, e mandou o textão como carta mesmo, assinando com o pseudônimo Garota Órfã Solitária, que não soa tão ruim assim afinal o PornHub também não havia sido inventado.

O editor gostou tanto da carta que publicou um anúncio no jornal para contactar a tal pequena órfã solitária. Elizabeth respondeu, e ganhou um frila. Ela escreveu um artigo sobre as dificuldades das mulheres no mercado de trabalho, artigo publicado e elogiado.

Nellie aos 21 anos, no México

O próximo artigo foi sobre as consequências do divórcio para as mulheres, e como as Leis eram imperfeitas, e nessa época o Editor, George Madden, sugeriu que ela escolhesse um pseudônimo, como era meio que norma pras poucas mulheres que escreviam profissionalmente na época.

Ela escolheu Nelly Bly, título de uma música popular na época, provando mais uma vez que música com nome de mulher não foi uma modinha criada nos anos 70/80. O editor, claro, fez caquinha, escreveu Nellie Bly e ficou por isso mesmo.

Carol Danvers negociando com JJ Jameson. Nellie era mais ou menos assim.

Um belo dia alguns leitores começaram a encher o saco do jornal por causa dos artigos de Nellie, que não eram o tipo de texto que uma mulher normalmente escrevia. Ela foi removida para a seção feminina, para escrever sobre jardinagem, moda e coluna social.

Dando uma banana para o editor, Nellie, com 21 anos de idade for ser correspondente no México, onde passou seis meses reportando sobre cultura, costumes, culinária, política e muito mais. Ela acabou sendo saída do México quando começou a escrever verdades sobre o governo do ditador Porfirio Díaz, e sob ameaça de cadeia, voltou pra Pittsburgh mas logo se cansou de fazer o feijão com arroz de resenhar peças de teatro e escrever matérias femininas.

Com a cara e a coragem ela foi para New York, e de novo deu com muita cara na porta, a ponto de um dos artigos que conseguiu vender para seu antigo jornal era sobre as dificuldades de uma jornalista em arrumar emprego em New York, mas sua persistência acabou premiada: Ela conseguiu uma entrevista e impressionou ninguém menos que Joseph Pulitzer.

Contratada pelo New York World, Nellie fez de tudo, escreveu matérias sobre vôos em balões e mergulhos em batiscafos, cobria greves, fraudes, escândalos de corrupção, no mais arrojado estilo de jornalista investigativa.

Sua grande matéria envolveu o corrupto sistema de saúde em Nova York, que explorava abertamente pessoas com problemas mentais.

Nellie, que falava espanhol arrumou uma vaga em um pensionato para moças de fino trato, e deu início a seu plano: Virou a noite acordada pra ficar com olheiras, saiu acusando outras moradoras de serem loucas. A dona do pensionato tentou controlar Nellie, não conseguiu, chamaram a polícia. Nellie não falava coisa com coisa, e depois de ser examinada por um policial, um juiz e um médico, foi mandada para Bellevue.

Como Amanda Waller estava de férias, Nellie não foi convidada para o Esquadrão Suicida, e logo depois foi transferido para o Asilo de Mulheres Lunáticas da Ilha Blackwell, e se isso não soa bem, você está correto.

Examinada por médicos desinteressados que a declararam insana, Nellie passou dez dias comendo algo próximo de lixo, sofrendo banhos gelados forçados, passando horas amarrada, sendo atacada por ratos e enfermeiros.

O quê, fora tortura, seria capaz de gerar insanidade mais rápida do que aquele tratamento?

Depois de dez dias os advogados do jornal conseguiram, como planejado, tirar Nellie do hospício. A estadia rendeu um livro, “Dez Dias Na Casa de Loucos” e uma série de artigos, que foram reproduzidos em jornais no país inteiro, geraram uma polêmica imensa e o caso foi parar até na Justiça. No final a maioria das recomendações de Nellie acabaram sendo implementadas.

No ano seguinte, Nellie tinha ainda meros 24 anos, mas já era a jornalista mais conhecida do país, e meio que escolhia a própria pauta. E Nellie, como todo mundo nos Estados Unidos, nutria uma saudável obsessão por Júlio Verne, o Dan Brown de seu tempo. (não realmente mas vou adorar os xingamentos nos comentários)

Naquela época, e até bem depois, mulheres não viajavam sozinhas. Os Estados Unidos do final do Século XIX eram um pesadelo de misoginia e machismo, algo como a Arábia Saudita do Século XXI, mulheres normalmente sequer tinham passaportes, elas viajavam como uma rubrica no passaporte dos maridos.

Nellie ignorou esses detalhes e propôs a seu editor bater o recorde fictício de Júlio Verne, e dar a volta ao mundo em menos de 80 dias.

“Impossível, foi o terrível veredicto.” Nellie relembra que disseram: “em primeiro lugar você é uma mulher e precisa de um protetor, e mesmo que fosse possível para você viajar sozinha você precisaria carregar tanta bagagem que não conseguiria pegar as conexões”

Nellie respondeu: “Muito bem: Coloquem um homem, saindo ao mesmo tempo que eu, e eu partirei no mesmo dia, por outro jornal, e vou vencê-lo.”

O editor, conhecendo Nellie, engoliu o machismo, autorizou o projeto e ela embarcou em 14 de Novembro de 1889 em um vapor com destino à Europa.

Ela levava um casaco, um vestido, várias calçolas, 200 Libras Esterlinas, Ouro e uma necessaire com seus itens de higiene feminina, quem em 1889 deviam incluir mercúrio arsênico e uma chave inglesa, sei lá.

Nellie viajou em lombo de burro, de trem, de barco, carruagem. Enfrentou bandidos, desconversou propostas de casamento, visitou Hong Kong, Japão, o Canal de Suez, Ceilão, Cingapura e boa parte da Europa. O tempo todo ela documentava sua viagem, telegrafando artigos para o jornal.

Nos Estados Unidos Nellie era acompanhada por milhões de leitores, o New York World chegou a estabelecer um concurso para que os leitores adivinhassem o momento preciso em que Nellie chegaria a cada ponto da viagem.

No dia 21 de Janeiro ela chegava a São Francisco, mas o mau tempo fez com que a travessia do Oceano Pacífico fosse muito lenta, e Nellie estava dois dias atrás em seu cronograma, de fazer a volta ao mundo em 75 dias.

Sem problema, o jornal fretou um trem inteiro, que saiu em uma carreira desabalada atravessando o país. Nellie chegou a Nova Jersey completando sua volta ao mundo em 72 dias, 6 horas, 11 minutos e 14 segundos.

A aventura, claro, virou outro livro: Nellie Bly’s Book: Around the World in Seventy-Two Days

Nellie saiu em turnê promovendo seu livro, indo inclusive para a Europa, onde conheceu Julio Verne, que deve ter achado fascinante sua ficção ter sido superada por uma garota.

No auge da carreira, Nellie parou com o jornalismo para escrever ficção, se mudou para Chicago mas só trabalhou por lá seis meses. Ela conheceu o milionário Robert Seaman e em duas semanas a brilhante jornalista de 28 anos se casava com o gigante da indústria de 70. Sim, o amor é uma coisa linda, seu cínico.

Ela ainda trabalhou por um tempo, no começo do casamento, mas não escreveu nada entre 1897 e 1912. Mesmo com a morte do marido em 1904, Nellie acabou se focando nas empresas que produziam louças esmaltadas, ela mesma autora de várias patentes na área.

A empresa começou a ir mal das pernas, com um monte de processos trabalhistas, e Nellie voltou a escrever para pagar as contas (eu entendo isso). Agora trabalhando para o New York Evening Journal, ela matou dois coelhos com uma só passagem de primeira-classe: Para fugir de um Processinho™, Nellie foi ser correspondente na Áustria. Em 1914. Sim, ela era péssima aluna de História, ou saberia que em 1914 começou a 1a Guerra Mundial.

Sendo testemunha ocular da história, Nellie se tornou a primeira mulher a visitar a frente de batalha e conhecer as trincheiras na linha áustria-sérvia, e em 1915 ela chegou a ser presa pelo exército austríaco acusada de ser uma espiã britânica.

Em 1919 ela voltou pros Estados Unidos, onde teve que processar a mãe e o irmão, que haviam tomado posse da casa e do que havia sobrado dos negócios do marido de Nellie, mas depois disso ela se acalmou e se contentou em ser colunista do Evening Journal, o que ela fez até morrer, em 1922, aos 57 anos.

Nellie Bly deveria ter sido uma dona de casa, mãe parideira e nada mais, mas sua sede de saber, conhecer e compartilhar a Verdade falou mais alto. Ela sempre será um exemplo para qualquer um que não aceita a mediocridade imposta por outros, e que fique a lição: Quando falarem que algo é impossível, apenas ria.



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