Na legendária Playboy de Março de 1988, com Luma de Oliveira na Capa Washington Olivetto contou uma aventura pitoresca, em sua entrevista. (sim, eu lia as entrevistas)
Disse ele quando foi à União Soviética participar de um evento, passou comerciais brasileiros. A maioria deles os russos adoraram, mas um em especial eles não conseguiram entender: Foi um comercial onde as pessoas se disfarçavam para comprar mortadela, que era vista como comida de pobre, mas no fundo todo mundo gosta de mortadela.
Os russos não entenderam nada, na União Soviética qualquer russo trocaria latas de caviar por um bom pedaço de mortadela, considerada uma iguaria, rara e cara.
Nem precisamos extrapolar muito, você raramente come lagosta, já o pescador não come mais porque enjoou. O peixe e o camarão que custam uma fortuna no mercado, pra quem pega sai de graça (eu sei). O transporte é parte fundamental do custo de alimentos. Na Pará todo mundo come Castanha do Pará, que lá chamam só de castanha. Aqui no Rio a gente compra em loja de homeopatia.
A percepção do status socioeconômico de um alimento é um negócio fascinante. Eu já contei como na Prússia o povo passava fome mas não comia batatas, que consideravam comida de pobre, quase veneno. Foi preciso o Rei participar de uma campanha de marketing, com os nobres comendo batatas, pra população mudar de idéia.
Lagostas eram vistas como pouco mais que pragas. Por muito tempo nos EUA elas eram usadas como fonte de proteína pra ração animal e alimentos de prisioneiros. Quando os colonos chegaram na costa do Maine, reclamaram das “baratas do mar”, que se empilhavam nas praias trazidas pela maré.
Os índios, em sua sabedoria ancestral e comunhão com a natureza, usavam as lagostas como iscas e fertilizante, prática que os colonos adotaram.
Quando a situação apertava, as colheitas não ajudavam e faltava comida, quem não tinha como se virar comia lagosta. Com isso elas ficaram associadas a comida de pobre, e logo desceram mais ainda na escala social: Lagosta se tornou comida de escravo.
Isso mesmo, escravos comiam lagosta, o que mostra que a escravidão segundo o Uncle Ruckus talvez não seja tão ficcional.
NOTA: Sim, era ficcional.
A coisa começou a mudar na segunda metade do Século XIX, quando comida enlatada começou a se popularizar. Lagosta era vendida em lata, como uma fonte acessível de proteína. Junto com as estradas de ferro, logo um monte de gente estava comendo lagosta longe da costa, e como não havia o estigma de ser de pobre, apenas barata, gente mais remediada começou a comer e gostar.
Com isso veio a curiosidade, e o turismo. As pessoas viajavam de trem para as cidades costeiras, e pediam lagosta. Os comerciantes estranhavam, mas vendiam. Novos pratos surgiram, os preços aumentaram e a percepção foi aos poucos mudando.
Por volta da Segunda Guerra Mundial lagosta já era um prato de luxo, ninguém em sã consciência imaginaria usar lagostas como fertilizante.
Entra em cena uma comida pra pobre que todo mundo tinha percepção que era pra pobre, pois foi feita pra pobre mesmo: O Spam.
Lançado em 1937 pela Hormel Foods, Spam, que é algo que no Brasil fica entre presuntado e fiambre, é uma espécie de ombro de poco suíno cozido, prensado e temperado com sal, açúcar, fécula de batata e nitrito de sódio como estabilizante. Não precisa de refrigeração, pode ser comido direto da lata e é -admito- gostoso.
A Hormel mirou no mercado saindo da Grande Depressão, mas um sujeito com bigode de ppk na Alemanha teve outras idéias, e as forças armadas dos EUA precisaram pensar em como alimentar suas tropas.
Os EUA seguiram a regra de Napoleão, de que um exército marcha em seu estômago, e as cozinhas de campanha eram excelentes.
Infelizmente nem sempre era possível bater o cartão e voltar da linha de frente até a cozinha, o jeito era apelar pras rações de combate, que também eram excelentes, não tão boas quanto as alemães, que vinham com anfetaminas, mas as americanas ao menos tinham cigarros e balas (de chupar).
Havia uma boa variedade de pratos, que exigiam que você montasse fogareiro pra esquentá-los. Um em especial não tinha esse problema, e ainda era mais barato, o Spam. A variedade acabou diminuindo, e boa parte das rações vinham com Spam, sempre spam, o que fez muitos soldados criarem uma relação de amor e ódio com o prato.
Até 1945 o Exército dos EUA já tinha comprado 75 mil toneladas de Spam, que era usado em rações, para agradar as crianças nos territórios libertados, e como presentes para moças dadivosas, na falta de meias de seda.
Spam também foi enviado como alimento de emergência para a Inglaterra, que antes da Guerra importava 1/3 de seus alimentos, e se tornou dependente dos comboios vindos dos EUA. Como Spam era barato, não-refrigerado e fácil de embalar e transportar, era natural ser enviado em quantidade para os ingleses.
Margareth Tatcher, na época adolescente, descreveu Spam como “Iguaria de Guerra”. Ela se recorda em 1943 quando recebeu amigos, abriram uma lata de Spam, com pêssegos, tomates e alface, e comeram spam com salada.
Na linha de frente, soldados comiam Spam e xingavam a empresa. Jay Hormel, filho do fundador e veterano da 1ª Guerra Mundial conta que a empresa mantinha um arquivo com xingamentos dos soldados, que escreviam cartas comparando a Hitler e Hirohito, chamando Spam de presunto que não passou no exame médico, “Something Posing As Meat”, e outros.
Na verdade, a sigla Spam significa… bem, ninguém sabe, é um segredo da Hormel.
No outro front, Spam era muito melhor recebido. A ração típica de um soldado russo era peixe seco salgado e pão preto. Nada contra pão preto, tenho até amigos que são, mas depois de um tempo você enjoa, e isso quando tinham ração suficiente para enjoar.
Claro, em Stalingrado peixe seco seria um presente dos céus, o que não quer dizer que o resto das tropas estivesse muito melhor. Com o Lend-Lease os EUA enviaram milhares de toneladas de Spam para a União Soviética, que batizou o prato de “Salsicha Roosevelt”, e realmente adoraram.
Spam era consumido em todos os escalões, e em suas memórias Nikita Krushev escreveu que sem Spam não teriam conseguido alimentar seu exército.
Hoje o Spam saiu de moda no Reino Unido, e os russos migraram pra Tushonka, uma versão local, mas na região do Pacífico o Spam está firme e forte.
Presente desde a Segunda Guerra Mundial, e permanecendo por vários anos depois, graças a arranca-rabos na Coréia e no Vietnã, as presenças militares americanas em lugares como Japão, Filipinas, Indonésia e adjacências tornaram o Spam extremamente popular, sendo totalmente incorporado à culinária local.
No Hawaii come-se Spam para todo lado, e se alguém falar que é comida de pobre, apanha. Na verdade em muitas lojas locais fazem algo inconcebível para nós brasileiros, por exemplo: Latas de Spam em embalagens anti-furto.
Jay Hormel morreu em 1954, já a empresa, a Hormel Foods está muito bem, obrigado, e Spam ainda vende muito em dezenas de países, apesar de ter o nome associado com a nefasta prática de email de propaganda não-solicitado, culpa deste esquete do Monty Pyhton:
O mais divertido de tudo é que George Hormel era imigrante alemão, e Jay aprendeu as técnicas de processar e enlatar carne em conserva em uma viagem à Alemanha, Os chucrutes entregaram o “segredo” de como alimentar os exércitos que futuramente os iriam derrotar.
Fontes:
- Hormel Kept a ‘Scurrilous’ File of Hate Mail About Spam from World War II GIs
- A War Won With Spam (and a Few Other Things)
- Spam
- Locked up SPAM makes US headlines, but Hawaii has done it for years
- FOODS OF WAR: SPAM
- What did Soviet troops think of Spam meat?