O repórter veterano já tinha visto coisas de outro mundo, mas ainda se espantava como todo dia aprendia algo novo, cobrindo as ações dos soldados do 2º Batalhão, 327º Regimento de Infantaria da 1ª Brigada de Combate do Exército dos EUA no Afeganistão.
Ele via gente que se achava invulnerável descobrir da pior forma a própria mortalidade. Sacrifícios e gestos de coragem o maravilhavam.
“Minha definição de herói nunca mais será a mesma” – pensou ele.
No alto de uma colina na passagem de Nawa, província Kunar. O Sargento Curtis Smith provia proteção enquanto o resto da patrulha comia suas rações. Como sempre o jornalista se afastou para comer sozinho. Curtis pensou em ir conversar com ele, a tristeza do homem era evidente, mas todas as tentativas de conversa haviam sido rechaçadas educadamente.
Ajeitando seu capacete o jornalista teve uma sorte que poucos homens vivos compartilham: Com o canto do olho percebeu um clarão em uma montanha vizinha. Ele sabia que só poderia significar uma coisa.
Na pequena caverna, quase um recesso, o guerrilheiro talibã murmurava “allah Akbar” enquanto observava a patrulha americana. Amaldiçoando sua burrice, ele só lembrou do treinamento depois de atirar: Nunca em uma região de sombra, ou o clarão do disparo irá denunciar sua posição.
Dessa vez Allah havia sorrido para ele, e nenhum dos invasores havia percebido o tiro, embora o soldado grande, desarmado e afastado dos outros parecesse olhar direto para sua posição. “Tudo bem”, pensou Hamad. “Tudo acabará em uns dois segundos.
Não era preciso nem sequer um binóculo ou visão privilegiada para deduzir que o tiro era de um rifle M82 Barrett, provavelmente roubado de uma outra patrulha. Era uma das poucas armas que conseguiriam atingir um alvo a 1600 metros. “Ponto para meu treinamento”, pensou o jornalista.
“O mais engraçado é o silêncio” murmurou baixinho para não alertar os outros. Minha audição é considerada impressionante mesmo entre meus colegas de trabalho, que não são nada ordinários, mas não posso violar as Leis da Física. A bala está vindo em minha direção a 853 metros por segundo, a velocidade do Som não passa muito de 300.
Ele calculou que o tiro chegaria em menos de dois segundos. O talibã teria tentado um tiro na cabeça ou um mais seguro no peito? O resultado em um humano normal é devastador de qualquer forma. A monstruosa bala .50 sozinha tinha 52 gramas de peso. Havia sido criada para destruir veículos, atravessando um bloco de motor como se fosse manteiga. Os mais sortudos atingidos por balas assim perderam apenas membros.
Mesmo assim ele não se importou. Preferiu imaginar na paz que aquela bala traria, em como finalmente ele teria o abençoado esquecimento, sem precisar mais pensar… nela.
“Você acha que vai salvar o mundo” – ela o acusou, corretamente.
“É o meu trabalho, o seu também” – racionalizou o jornalista. Ela teria que entender, quantas vezes ela não se arriscara por uma matéria, não sofrera ameaças, não cancelara jantares e encontros?
“É diferente, querido. Eu tento levar uma vida normal, mesmo priorizando meu trabalho. Eu saio para tomar café e ir ao shopping com minhas amigas. Qual foi a última vez que você fez isso? Vocês só se encontram para trabalhar, falar de trabalho e planejar trabalho. Qualquer hora do dia ou da noite você sai voando ao menor sinal de problema. Eu já comprei todas as joias vagabundas dos programas da madrugada, droga”
A frustração era imensa. Ela não entendia. A vontade era de socar uma montanha.
“Meu amor, nós já discutimos isso tantas vezes, não me peça para escolher entre você e o mundo”
“Você já escolheu.” Ela disse, com voz baixa, quase inaudível. “Eu te amo, você me tira do chão, mas não posso ser sua última prioridade. Seja feliz.”
A menos de 800 metros de distância a bala seguia uma trajetória perfeita. O vento era praticamente inexistente, a óptica do Barrett excelente e as tabelas de tiro convertidas para farsi mais que corretas. Seria lindo ver a cabeça do ianque explodir em uma nuvem rosada, falou Hamad, permitindo-se um sorriso.
Mesmo sendo tarde demais, ele tentou seguir o conselho dela, foi buscar apoio entre os amigos, apenas para descobrir que todos estavam tão mal quanto ele. Um só fingia ser popular e mulherengo, quando na verdade passava as noites trabalhando. Outra era um exemplo clássico de mulher linda que não entendia nada de homens. Todos obcecados, diziam que a melhor forma de esquecer era trabalhar mais ainda.
Ele bem que tentou, mas cada rua, cada esquina, cada estrela e planeta no céu o lembravam dela. Poderia fugir para o fim do Universo, e as lembranças continuariam. Lembranças do que foram, do que poderiam ter sido, lembranças da sensação de impotência quando ela foi embora.
Ele pensou em pedir para que ela voltasse, oferecer diamantes, viagens, a Lua, mas ela saberia que são coisas sem significado. Ela queria atenção e dedicação, e ele se envergonhava de ser tão fiel às lições de seus dois pais, o natural e o adotivo, que o ensinaram responsabilidade para com o bem comum. Faltava-lhe coragem para desistir do Mundo por uma mulher que valia mais que o Mundo.
As raias do Barrett ajudavam a estabilizar a bala, girando agora em sua trajetória final. As compensações feitas, incluindo dados como a rotação da Terra e temperatura fariam com que o projétil, apontado para 3 metros acima e à esquerda da cabeça do alvo o atingisse em cheio.
As últimas notícias da redação eram que ela estava em uma viagem na França, cobrindo um encontro da União Europeia. Por pouco ele não voou para Paris apenas para tentar vê-la de longe. Foi sorte, no mesmo dia ela mudou seu status no Facebook “em um relacionamento”.
Ela havia começado a namorar um diplomata belga.
Seu lado mais negro imaginou cenas bárbaras, arrancando os membros do tal belga, esmigalhando seu crânio, em um frenesi de raiva e ciúmes, mas ele era melhor que isso. O que só tornava as coisas piores. Não podia descontar sua frustração em ninguém, seria injusto e covardia.
“Eu só queria que isso acabasse” suspirou, soluçando.
O mais cruel é que qualquer outro na mesma situação veria a bala como um gesto misericordioso, pondo fim a uma situação sem saída, mas mesmo em seus piores momentos ele no fundo era um escoteiro. Sabia que morrer não era solução e aquela bala não resolveria seus problemas, mesmo que o atingisse.
Movendo a mão com uma velocidade sobre-humana Kal-El, Clark Kent, o último filho de Krypton segurou a bala a alguns centímetros do capacete, ao mesmo tempo em que explodia o rifle com sua visão de calor.
Vendo que o jovem talibã não havia se ferido, ele esperou sinceramente que com isso ele repensasse sua vida e abandonasse a guerrilha.
“Seja feliz” disse Clark, sabendo que no fundo isso era uma mentira.