Ukobach observava seus escravos alimentarem as caldeiras. Era importante que o Inferno permanecesse insuportavelmente quente. Nem os demônios deveriam se sentir confortáveis ali, senão o local perderia seu propósito.
Uma garotinha de quatro ou cinco anos cambaleava, carregando um cesto de carvão desumanamente pesado. À sua volta demônios-capatazes riam e a chicoteavam. A cada lambida das pontas de chumbo do chicote ela sentia o terror do gatinho que havia matado, só de curiosidade. Como sempre após alguns golpes certeiros a espinha da menina foi partida, ela caiu ao chão, sem conseguir se mover ou respirar, tendo como certeza apenas que a morte não viria, não de verdade. No dia seguinte ela acordaria de novo inteira, de novo destinada a trabalhar até ser morta por demônios implacáveis. Afinal, eram demônios.
Um sorriso atravessou o rosto de Ukobach, mas nem foi pelos demônios ao longe jogando a garotinha ainda viva nas fornalhas, só para variar. Seu pensamento estava bem distante, vários mundos de distância. Ele não conseguia acreditar na própria sorte (se o termo pode ser usado no Inferno). Tido como um demônio menor, ele não era adorado ou temido por ninguém. Chamado por uns de Demônio da Engenharia, era responsável pelo fogo do Inferno. Outras escatologias o definiam como o inventor das comidas fritas (humanos inventam cada besteira) mas, mais importante, ele era o demônio inventor dos fogos de artifício.
O problema é que fogos eram algo criado para promover alegria, felicidade, deslumbramento. O medo que Ukobach pretendia incutir nos humanos nunca aconteceu, e um demônio que não mete medo tende a ser rebaixado.
Por incontáveis eons, essa pequena atribuição havia se mostrado inconveniente. Até aquele dia em uma boate no país que Ukobach descobriu se chamar Brasil. Mais de 230 mortos, milhões de pessoas culpando os fogos de artifício, imagens mentais (erradas, mas funcionavam) de pessoas horrivelmente queimadas, pânico, desespero.
Tudo isso atravessou o limbo entre os mundos, desviando dos destinos habituais, indo atingir direto Ukobach. Jamais em sua existência ele havia possuído tanto poder. Ele precisava aproveitar essa chance única, e o fez. Normalmente ele não conseguiria expandir sua mente até o reino dos mortais sem ajuda de seu mestre Belzebu, mas toda aquela energia psíquica o elevara a par com os Duques do Inferno, ao menos temporariamente.
Ukobach tinha que agir rápido, antes que outros demônios percebessem seu súbito poder, o desafiassem –ou pior- fossem contar para Adramelech, Presidente do Alto-Conselho dos Demônios. Todos no Inferno eram encorajados a conspirar contra seus superiores, mas a pena para quem fracassasse era terrível. Quase tão ruim quanto a para quem se acomodasse e nada fizesse.
O plano de Ukobach era simples: Ele iria abrir um portal e invocar algum Ser das Trevas e do Fogo (não questione, demônios gostam de ser contraditórios). O Caos e Terror causados pelo mostro dariam mais poder a Ukobach, colocando-o em um ciclo vicioso que o tornaria VIP, talvez até ganhando o direito de olhar diretamente para Lorde Lúcifer.
Claro, ele não poderia usar sua área de atuação como ponto focal, induzir humanos a explodir lojas de fogos acionaria um monte de alarmes no Inferno, e mesmo contando em seus quadros com todos os advogados que já existiram, não haveria defesa suficiente para Ukobach.
Ele decidiu, em seu surto megalomaníaco, atacar os 36 Tzadikim Nistarim. Na tradição judaica existem, a qualquer momento, 36 homens justos caminhando na face da Terra. Os cínicos dirão que é 36 justos entre a população humana é uma estimativa otimista, mas os Tzadikim são especiais.
Santos humildes, são pessoas que levam sua vida em paz, pureza, bondade, demonstrando o quão bom o Homem pode ser. Eles justificariam a Humanidade aos olhos de Deus, e não teriam nenhuma noção de seu propósito.
Se apenas um deles deixar de existir, a Criação perderá seu sentido e Deus destruirá o mundo.
Mesmo em seu delírio de grandeza, Ukobach sabia que não poderia ser tão simples. Quando um Tzadikim descobria seu propósito era substituído por outro. Se viesse a morrer, idem. A profecia só seria cumprida se o Tzadikim desviasse do caminho da retidão.
Balançando sua taça de vinho, Ukobach chamou a atenção de seu escravo pessoal, um raro pastor evangélico que realmente acreditava em tudo que pregava, praticando homofobia, preconceito, racismo e tantos outros desvios de caráter tendo plena certeza de que estava realizando o trabalho de Deus, a quem amava profundamente.
Molhando os lábios, Ukobach sorveu o líquido vermelho recém-servido, descartando de cara a hipótese de tentar um dos Tzadikin. Tentar santos era uma tarefa ingrata, a maioria era tão resoluta em sua esquizofrenia que desenvolviam demônios imaginários e passavam o dia se digladiando com eles, e as propostas de Ukobach nunca eram tão criativas ou tentadoras quando as que surgiam da mente daquelas pessoas esquisitas.
Fora que tentar santos era algo completamente fora de moda, mais comum na Idade Média, período que Ukobach tinha asco.
Não, o plano era bem mais sutil. Ukobach iria rastrear alguns dos 36 Tzadikin e convencer satanistas, illuminati, maçonistas de internet ou outro grupo de conveniência a matá-los.
A abominação da morte de um santo desses geraria um fluxo energético de proporções apocalípticas, literalmente, pois nos infinitesimais milésimos de segundo em que a Humanidade ficar com um Tzadikin a menos, o Apocalipse será iniciado, apenas para ser cancelado quando a “santidade” pular para outra pessoa.
“Deus abençoe a Teoria Quântica”, disse Ukobach em voz alta, antes de cair na gargalhada.
Seria como uma chave elétrica ligando e desligando, um pico de energia psíquica imenso, todo para Ukobach. A mera idéia já o fazia salivar.
Para alegria de Ukobach, nada menos que oito Tzadikins estavam reunidos na mesma cidade do Brasil, bem ao alcance de seus novos poderes. Por algum motivo cósmico um número desproporcional de santos vivia em São Paulo. Talvez fossem extremamente necessários lá.
Tudo que era preciso agora seria contatar os satanistas, inventar uma história qualquer e fazer com que matassem esses oito santos, em um ritual macabro qualquer (o ritual não importava mas satanistas adoram essas coisas teatrais). De posse da energia elementar das mortes, o último passo seria posicionar os crânios pela cidade, na forma de uma runa simbolizando Ifrits, subalternos árabes do Inferno.
Tecnicamente não eram demônios, nem tinham grandes poderes, mas como eram criaturas de fogo, aladas e só podiam ser combatidas com magia, algo fora de moda no Século XXI, pareciam ser o ideal para causar o Caos que Ukobach desejava, sem terem poder para realmente desafiá-lo.
“Sim”, pensou ele, imaginando o futuro glorioso, andando entre os Grandes. Aquele escritor de gibis estava certo, é possível ter esperança no Inferno.
Claro, em um mundo divertido seria assim, na prática era só uma velha doida macumbeira mesmo.