A verdade inconveniente sobre a primeira mulher piloto de caça

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Sabiha Gökçen nasceu em 1913 em Bursa, interior da Turquia. Não que as perspectivas de uma menina em um país muçulmano fossem muito grandes, mas a sorte definitivamente não sorriu pra ela. Tornando-se órfã de pai e mãe, Sabiha e os irmãos passaram a viver nas ruas, até cair em um destino pior ainda: Um orfanato turco.

Sobrevivendo com restos de comida fugindo de surras constantes, Sabiha um dia conheceu Mustafa Kemal Atatürk o fundador do moderno Estado da Turquia.

Ele era um reformista, secularista que arrastou na marra a Turquia do Século XIV pra modernidade. Ele também era um filho da puta mas ainda não vem ao caso.

Sim, por incrível que pareça esse sujeito era um FDP.

Visitando o orfanato, Atatürk foi surpreendido quando uma menina pediu permissão para falar com o Presidente; Sabiha queria autorização dele para frequentar uma escola.

Admirado, Atatürk pensou em dar entrada nos papéis e conseguir permissão para adotar a menina, até que se lembrou que ele era o Presidente. Ela foi removida do orfanato e levada para o Palácio Presidencial, aonde passou a morar junto com as outras filhas adotivas do Presidente.

Com educação garantida, Sabiha acompanhava o pai e compartilhava de seus interesses, um deles, aviação. Atatürk criou várias organizações aeronáuticas, civis e militares. Em 1935, durante uma apresentação de uma escola de vôo, Sabiha estava especialmente entusiasmada com uma demonstração de paraquedistas. Atatürk perguntou se ela queria aprender a saltar.

Ela respondeu que claro que sim. Ele então ordenou ao Chefe da escola que incluísse Sabiha em uma turma, o que foi feito, mas ela percebeu que não faz sentido pular de um avião em perfeito funcionamento, e resolveu aprender a pilotar.

Sabiha Gökçen

Na época as academias militares turcas não aceitavam mulheres, exceto se fossem filhas do Presidente. Sabiha então ganhou um uniforme feito só pra ela, e acesso às escolas de pilotagem. Um curso especial de 11 meses foi planejado, ao final do qual ela se graduou. Depois disso foram mais de seis meses treinando para se tornar piloto de caça.

Pelo visto o medo de matar a filha do Presidente era grande demais então os instrutores capricharam, Sabiha se tornou ótima no manche, e logo foi enviada em missões de combate, bombardeando posições inimigas com precisão, feito que rendeu elogios e condecorações.

Sabiha era baixinha, e consequentemente, invocada.

No final, Sabiha pilotou 32 tipos de aeronaves, completou mais de 8000 horas de vôo e voou 32 delas em combate. Ela se tornou instrutora, treinando outras mulheres.

Sabiha Gökçen morreu em 2001, aos 88 anos. Ela foi a primeira mulher a se tornar piloto de caça, a primeira mulher a participar de combate, é a única mulher na lista “Os 20 maiores aviadores da História”, da Força Aérea dos EUA, e o Aeroporto de Istanbul leva seu nome.

O problema…

Turcos não eram bonzinhos. Atatürk modernizava a Turquia na marra, enquanto calava na porrada as vozes dissidentes. Entre 1914 e 1923 a Turquia antecipou Hitler e criou seu próprio genocídio, matando 1,5 milhões de Armênios, e embora tecnicamente não fosse culpa do Atatürk, que só assumiu em 1923, ele não exatamente pediu desculpas.

Pelo contrário, e em 1937/1938 a região de Dersim ensaiou uma rebelião, ao qual Atatürk enviou 50 mil soldados para lidar com 6000 rebeldes. A operação se tornou um verdadeiro massacre, com as tropas do Governo atacando de forma indiscriminada alvos civis e militares.

Parte dos terríveis rebeldes curdos devidamente bombardeados.

Os tais “50 bandidos” que Sabiha teria matado com uma bomba de 50Kg? Eram só pessoas. A Força Aérea Turca bombardeou impiedosamente cidades e vilas, usando não só bombas convencionais como armas químicas.

Ao final, 13160 civis estavam mortos, 11818 foram forçados a emigrar, para que populações turcas étnicas ocupassem as terras.

O Massacre de Dersim foi tão feio que em 2011 o Primeiro-Ministro da Turquia se desculpou oficialmente, chamando de “um dos eventos mais trágicos de nossa história”.

É justo tirar de Sabiha seus méritos aeronáuticos? Há quem queira mudar até o nome do aeroporto. Outros dizem que ela não conta pois era “filha do Rei” e tudo que conseguiu foi por causa disso, mas ela foi corajosa o bastante pra aos 12 anos impressionar um Presidente, e ela efetivamente aprendeu a voar e combater muito bem.

Em um mundo aonde a moda é o cancelamento, fica o dilema. Alguns, como o Google e a Wikipedia, preferem varrer o lado polêmico para debaixo do tapete. Outros querem sumir com Sabiha do mapa.

Sabiha e seu avião

EU acho que a resposta está no meio do caminho. É possível entender que sim, ela teve privilégios, sim ela teve uma infância horrível, e ela foi a única que correu atrás do sonho de voar, nenhuma outra “princesa” em condição semelhante, na Turquia ou em outro lugar seguiu o caminho.

O mais justo é reconhecer que Sabiha Gökçen merece seus méritos por ter aprendido a voar, mesmo sem não ser nenhum anjo. Apagar as pessoas da história nunca dá certo. Se elas foram ruins demais, vamos esquecer de seus erros e achar alguém para repeti-los.

Se elas foram apenas ruins, ou cometeram atos moralmente questionáveis, apagá-las dos livros deixa lacunas incômodas.



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