Quando o maior derramamento de sangue da história foi ótimo para a menstruação

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Menstruação é um processo natural, mas não tem nada de bonito. É o corpo dizendo “pô, sacanagem, me preparei todo pra uma gravidez e você me sacaneou. Agora aguenta!”. A culpa é de nossa biologia complicada, e somente alguns primatas e morcegos menstruam (piadas por sua conta). Ah sim, e este bicho aqui:

O tema sempre foi tabu, mesmo hoje causa extremo desconforto e poucas coisas traumatizam mais um garoto do que a mãe pedir para ele ir buscar um Modess no mercado. Temos aversão natural a sangue, ele é um contaminante biológico E atraí predadores. Instintivamente associamos sangramento a algo errado muito antes de evoluirmos o suficiente para menstruarmos.

Mais ainda: Menstruação não é normal.

O estado natural das fêmeas da espécie humana é estar grávida. A Natureza não está preocupada com estabilidade financeira ou se é o momento para a fêmea investir na carreira. Nós humanos que inventamos essas coisas e mexemos no ciclo natural. Sem nossa tecnologia para garantir alimentos abundantes, abrigo contra predadores e uma baixíssima mortalidade infantil, uma espécie com a taxa de reprodução de uma humana urbana moderna seria basicamente um panda.

Temos poucas crias por fornada e a gestação é muito longa. Sem tecnologia a única forma de manter a espécie é parir sem parar. Claro, quando nos tornamos racionais as mulheres mudaram isso, inventando mil meios de não engravidar, o que tornou a menstruação algo bem mais cotidiano, para horror de todo mundo que não menstrua.

Essas mudanças acabaram criando um tabu imenso. Sério mesmo. Que o diga…

Levítico 15:19

Quando uma mulher tiver sua menstruação, ficará impura pelo período de sete dias. Quem tocar nela durante esse tempo será igualmente considerado impuro até o pôr do sol.

E nem pense no velho ditado “se o sinal estiver vermelho, pegue a estrada de barro”

Levítico 20:18

O homem que se deitar com uma mulher durante as regras e descobrir sua nudez, põe a descoberto a fonte do seu sangue, e ela mesma descobriu a fonte do seu sangue; serão ambos exterminados do meio do meu povo.

E aproveitando, uma misoginiazinha básica:

Levítico 12:2 e 12:15

Quando uma mulher der à luz um menino será impura durante sete dias, como nos dias de sua menstruação.

Se ela der á luz uma menina, será impura durante duas semanas, como nos dias de sua menstruação, e ficará sessenta e seis dias no sangue de sua purificação.

Esse horror todo não é exclusividade do cristianismo. Todas as sociedades e religiões têm tabus contra menstruação, e se você acha que os exageros são coisas de sociedades primitivas, aviso que o Nepal passou uma Lei em 2017 tornando ilegal o Chhaupadi, tradição hindu de exilar menstruandas forçando-as a ficar nos estábulos e celeiros, por todo o período que durar seu período. E não é apenas o incômodo de dormir com as galinhas, mulheres morrem por causa dessa prática.

Em Julho uma moça de 19 anos morreu picada por uma cobra que entrou na cabaninha reservada às fãs do ex da Marieta. Outra de 15 anos morreu sufocada depois que acendeu uma fogueira para se aquecer, na cabana de barro e pedra que era forçada a ocupar, pelo terrível crime de sangrar 5 dias sem morrer.

Várias religiões consideram mulheres impuras quando estão menstruando, ou todo o tempo, motivo pelo qual não podem ser ordenadas como pregadoras. Outras vão além, é comum em templos Hindus banir a entrada de mulheres durante o catamênio. (bota no Google)

Como se não bastasse todos esses incômodos, as mulheres incomodadas ainda têm que lidar com a realidade prática da menstruação. Fora as alterações de humor, cólicas e outros sintomas, sangrar pela rua não é agradável.

Historicamente sempre foi algo intimo, passado de mãe para filha e qualquer conversa sobre o tema garante que os homens saiam correndo do recinto. O método mais comum era a famigerada toalhinha. Comprovando que Douglas Adams estava certo, antigamente toda mulher sempre andava com uma toalhinha na bolsa, caso a Tia Flo (essa só funciona em inglês) aparecesse para uma visita surpresa.

Tks ao Dr cLimão

Problema é que pano por muito tempo foi algo caro, e as toalhinhas, feitas de retalhos de lençóis e roupas acabavam sendo lavadas, e quem já tentou tirar sangue de roupa sabe como isso é complicado. A absorção também não era grande coisa, e se fosse um mês caprichado fatalmente os vestidos e móveis ficariam manchados com aquele líquido azul que as mulheres emitem, segundo aprendi com os comerciais de Sempre Livre.

Com o começo da sociedade industrial surgiram opções como os Cintos Sanitários, para facilitar a fixação das toalhinhas, algumas já vendidas em farmácias cortadas no tamanho correto.

Não resolvia muito. Poucos lugares vendiam, era uma coisa mais de venda por catálogo, e acidentes aconteciam com frequência, dada a baixa capacidade de absorção de tecido comum.

A grande virada aconteceu quando a Primeira Guerra Mundial começou a pegar fogo. Soldados eram mortos e feridos aos milhares. Os hospitais de campanha não davam conta, e um produto em especial estava em falta e era muito caro mesmo quando disponível: Algodão. Não havia bandagens suficientes, e soldados morriam por causa disso.

Nos EUA a Kimberly-Clark já estava pesquisando alternativas, e em 1914 inventou o Cellu-cotton, um material feito com polpa de madeira com cinco vezes a capacidade de absorção do algodão, e custando uma fração do preço. O Exército Americano imediatamente adotou as bandagens feitas com o material, e a Kimberly-Clark ganhou rios de dinheiro estancando rios de sangue.

Rios de sangue não eram problema só dos baleados estropiados baionetados. Quem cuidava deles também tinha esse problema, e dado o tabu, as forças armadas não previam qualquer tipo de apoio para as enfermeiras na frente de batalha, se elas sangrassem por qualquer orifício que não tivesse origem germânica.

Como sempre elas se viravam com retalhos e toalhinhas, mas logo perceberam que tinham à disposição as bandagens de Cellu-Cotton, que passaram a usar. O resultado é que logo todas elas estavam jogando tênis, indo à praia, recebendo flores e todas aquelas coisas que as mulheres menstruadas que usam absorventes fazem.

Várias escreveram para a Kimberly-Clark, relatando o uso e agradecendo pelo produto. Certeza que os homens que receberam as cartas ficaram horrorizados e desconfortáveis, mas desconforto mesmo veio quando a guerra acabou, eles tinham centenas de toneladas de Cellu-Cotton e não sabiam o que fazer com aquilo. Era preciso um fluxo constante de sangue para estancar o prejuízo, mas onde conseguiriam tanto sangue e…

Bingo! Um sujeito chamado Walter Luecke lembrou das cartas das enfermeiras, fez as contas e viu que com metade da população do país sangrando todo mês, o mercado estava garantido. O próximo passo era arrumar um fabricante para transformar o Cellu-Cotton em um produto, e aí a coisa desandou.

Luecke tentou várias empresas, e todos disseram não. Menstruação era algo íntimo e constrangedor demais, seria impossível anunciar um produto relacionado com isso. Jornais não publicariam, cartazes gerariam reclamações, mulheres ficariam envergonhadas de ser vistas com o produto.

Walter insistiu, e a direção da Kimberly-Clark comprou a idéia. Iriam eles mesmos industrializar o produto, que depois de muita experimentação foi batizado de Kotex, de Cotton Texture.

A campanha inicial sequer mencionava explicitamente o uso do Kotex. Contavam com a inteligência das mulheres para deduzir o que estava sendo dito nas entrelinhas. As farmácias e lojas por sua vez tinham pruridos em vender esse tipo de produto, em geral era algo comprado de forma quase subversiva.

As próprias mulheres não se sentiam bem, o que é bem-feito, por zoarem adolescentes embaraçados quanto têm que comprar preservativos.

Um dos slogans da campanha era “peça pelo nome”, assim você não precisava dizer o quê queria, só o produto. Claro, só funciona se ninguém sabe do que se trata. Hoje em dia quem quer ser discreto chega na farmácia e pede Sildenafil, e não Viagra. Dizem.

Outra técnica foi deixar as embalagens no balcão, com um cofrinho para a consumidora botar as moedinhas, pegar a caixa e ir embora. Funcionou bem, as caixas eram discreta, com o nome do produto e nenhuma descrição, mas outro método foi mais eficiente ainda. Foi o primeiro uso registrado do modelo de self-service em lojas.

Algumas farmácias começaram a embalar Kotex em papel branco com uma fita azul, e deixar em uma pilha com um discreto aviso “Kotex – US$0,65”. As consumidoras pegavam a caixa branca, e ninguém fora o pessoal da farmácia sabia o que havia nela.

Nos primeiros anos o Kotex não rendeu muito dinheiro, a Kimberly-Clark teve que investir fortunas em publicidade até o público tomar conhecimento e ter curiosidade de experimentar o produto, mas depois que a demanda desandou, tiveram que sair comprando novas fábricas para manter a oferta.

Foi preciso uma guerra mundial, um sujeito teimoso e uma empresa determinada para emplacar um produto considerado básico e essencial para metade da população do planeta. Ou seja: mesmo quando há um mercado potencial imenso e cativo, não é fácil fazer sucesso, e Economia vai muito além de números. Em última análise envolve pessoas, e às vezes elas precisam ser convencidas que precisam de seu produto.

 

 



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