Tio Cardoso ensina aos jornaleiros que Deus existe

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No episódio Tapestry, de Star Trek – A Nova Geração o Capitão Picard leva um tiro que danifica seu coração artificial. Ele é operado de emergência mas com a médica é a Dra Crusher, ele morre, para acordar em um cenário celestial de pura luz branca. Um vulto em um manto brilhante se aproxima, estende as mãos. Picard aceita o gesto, e o vulto se revela como… Q.

“Bem-vindo ao pós-vida, Jean-Luc, você está morto.”

“Q, o quê está acontecendo?”

“Eu te disse. Você está morto, este é o pós-vida, e eu sou Deus.”

“Você não é Deus!”

“Blasfêmia! Você tem sorte de eu não te expulsar ou destruir, ou algo assim. O fato é que sua vida acabou cinco minutos atrás, nas mãos ineptas da Dra Beverly Crusher.”

“Não. Eu não estou morto. Recuso a acreditar que você comanda o Pós-Vida. O Universo não pode ser tão mal-projetado!”

A cena toda é ótima, até o ponto em que você se lembra que o Q é uma entidade Onipotente, e que quando ele diz que é Deus, poderia perfeitamente estar dizendo a verdade. Toda a existência Humana poderia não passar de uma de suas brincadeiras.

Mas o assustador mesmo é que segundo o Mental Floss, essa cena não aconteceu.

Estamos vivendo uma crise de credibilidade no jornalismo, gente gritando FAKE NEWS para todos os lados, e em alguns casos isso é verdade. A Notícia está sendo distorcida para se adequar à Narrativa, seja a direita americana praticamente acusando Hillary Clinton de abrir as portas da Embaixada na Líbia para que rebeldes massacrassem o embaixador, seja a esquerda replicando vídeos do Trump “ignorando” um garotinho em uma cadeira de rodas, convenientemente cortando o começo da cena, quando ele entra na sala e vai direto falar com a criança.

As pessoas estão cansadas dessa manipulação, isso está se tornando evidente, e acaba contribuindo para o resultado desta pesquisa de credibilidade dos meios de comunicação, feita pela AdWeek.

Repare que os veículos mais confiáveis são da mídia tradicional, e os menos confiáveis são os mais lacradores, escandalosos, panfletários e adeptos de clickbait. Em penúltimo lugar em credibilidade, o Buzzfeed, que economicamente é um sucesso, com milhões de pageviews, mas é um sucesso que não se traduz em credibilidade. Eles são o jornalismo marrom-nutella da Internet.

As pessoas consomem o conteúdo mas não levam a sério. O motivo é simples: Dois minutos depois elas encontram alguém refutando aquele mesmo conteúdo, com argumentos em geral mais convincentes.

Se seu objetivo é audiência a curto prazo, o modelo do Buzzfeed e similares é excelente. Chamadas caça-cliques, listas, testes online e trivialidades tratadas como polêmicas, como a bobagem da Cleo Pires gostar de sexo ou o LançaPerfume da.. sei lá, de outra aí.

Só que na hora de denunciar um Watergate, ninguém vai te levar a sério.

Esse jornalismo de 100 metros rasos é fruto do ciclo de notícias de 24h, onde a máquina precisa ser constantemente alimentada. Morre o copidesque, morre a revisão, morre o editor, o importante é encher páginas, rápido. Aí morre o Menino Jornalista, que deixou de ser apuração de fatos e virou apenas replicação de boatos.

O Mental Floss é um ótimo exemplo dessa mentalidade. Nesta matéria aqui eles tentam forçar uma polêmica sobre Jornada nas Estrelas, dizendo que Gene Roddenberry proibiu o uso da palavra “Deus” na série.

Pra quê Deus precisa de uma nave estelar?

A matéria em si é deduzida de cinco parágrafos de uma matéria da Entertainment Weekly, onde a roteirista Kirsten Beyer, que escreveu alguns livros de Voyager mas obviamente nunca assistiu nada de Jornada nas Estrelas briga com um ator por ele ter inserido um caco no texto, colocando um “pelamordedeus”.

Ela explicou que no futuro de Gene Roddenberry religião não existia mais e ninguém poderia falar “Deus”.

Na matéria do Mental Floss ampliam a história falando que é proibido qualquer menção a religião em Star Trek, mas que a nova série lacradora irá desafiar essa regra.

Se você é trekker já deve estar rindo ou mordendo alguma coisa. Eu te entendo.

A matéria toda é baseada em uma premissa inexistente. NINGUÉM que assistiu qualquer série de Star Trek assinaria esse texto.

Sò na série clássica são 97 menções a “Deus”, 1.22 menções por episódio.

Essas menções vão de deuses gregos, quando encontram Apollo em “Who Mouns for Adonais?”

“KIRK If you want to play god and call yourself Apollo, that’s your business, but you’re no god to us, Mister.”

Até referências DIRETAS a cristianismo, como em “Bread and Circuses”

“UHURA: I’m afraid you have it all wrong, Mister Spock, all of you. I’ve been monitoring some of their old-style radio waves, the empire spokesman trying to ridicule their religion. But he couldn’t. Don’t you understand? It’s not the sun up in the sky. It’s the Son of God.

KIRK: Caesar and Christ. They had them both. And the word is spreading only now.

MCCOY: A philosophy of total love and total brotherhood.”

No total, somando todos os episódios e filmes da franquia, “Deus” aparece 375 vezes. Como eu sei? Ao contrário da jornaleira do Mental Floss, que replicou a matéria sem apurar, eu usei 5s de Google e achei um motor de buscas para scripts de Star Trek.

Isso desmentiu a afirmação inicial. Se a jornaleira fizesse seu trabalho, a matéria cairia e ela teria que catar outra pauta, mas quem tem tempo pra isso?

A Verdade é apenas um detalhe, assim como o fato de que Deep Space Nine foi uma série INTEIRA girando em torno de religião, com discussões extremamente interessantes até com debates sobre criacionismo. Jornada nas Estrelas está lotada de religião e espiritualidade, mas para saber disso a jornaleira teria que conhecer a série, ou em último caso, pesquisar.

A regra, na Internet e na Vida é confiar desconfiando, mas é natural que a gente leve a sério fontes com histórico de credibilidade. É o chamado Benefício da Dúvida. Ignorar totalmente uma notícia por causa da fonte é errado, mas também é errado dar à BBC a mesma credibilidade do National Enquirer.

A Internet como um todo tem péssima credibilidade, mídias sociais mais ainda. Se você quiser um mínimo de reconhecimento nesses meios, precisa o tempo todo se diferenciar. Pesquisa, confira, faça checagem de fatos. Não repasse nada, por mais suculento que seja, se não confiar plenamente na fonte, e na dúvida, verifique antes.

E não, não estou reclamando por bobagem. Essa postura de jornaleiros que preferem reescrever a História a ter que pesquisar é MUITO perigosa. Qualquer dia vão apagar dos livros algo realmente importante.



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