Coco, São Francisco e a Mitologia que nunca existiu

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Salvo raras exceções, como o Coronga, a maioria das pessoas não tem a percepção de estar vivendo a História, algo que só acontece nos livros e em salas de aula, ou com gente muito acima da nossa faixa salarial. Aí 1500 anos depois um sujeito está agachado numa escavação estudando nosso cocô.

Claro, racionalmente ainda é difícil perceber a História acontecendo, nós estamos andando em um vale, a História só é percebida quando subimos em uma montanha e olhamos para trás, mas existe algo mais difícil ainda de perceber: A Mitologia.

Há um razoável consenso na Internet que a Cientologia está entre as mais ridículas religiões criadas nos últimos 100 anos. O dogma básico deles foi brilhantemente descrito em um episódio de South Park, que se deu ao luxo de descrever tudo sem acrescentar uma vírgula:

Basicamente 75 milhões de anos atrás havia um império galáctico comandado pelo maligno Lorde Xenu. Eles estavam com problema de superpopulação. Xenu sequestrou bilhões de aliens de milhares de mundos, os congelou e mandou para a Terra em naves espaciais que pareciam muito com jatos DC-8.

Na Terra eles foram jogados nos vulcões do Hawaii. Eles morreram, claro mas suas almas foram capturadas por dispositivos criados também por Xenu. Essas almas foram doutrinadas a acreditar em um monte de mentiras, esquecendo suas vidas anteriores. Soltas pela Terra, vagaram até encontrar os primeiros Homens.

Essas almas, chamadas Thetans, são perturbadas e por isso causam todos os nossos problemas.

E sim se isso soa como obra de um autor de ficção científica de segunda categoria, você acaba de conhecer L. Ron Hubbard.

Só que… de quê isso difere de cobras falantes, abertura do mar vermelho, gente andando sobre as águas? Eu respondo: TEMPO. Sem o distanciamento histórico somos muito mais céticos, e estranhamente, isso não vale só pra religião, mas também pra mitologia (que é como chamamos a religião dos outros).

Em realidade, isto:

É essencialmente a mesma coisa que isto:

Não vou puxar as batidas referências a Joseph Campbell mas super-heróis, o nome está ali, são heróis, tão válidos quanto Robin Hood, Aquiles, Salomão. E a parte super? O que difere Sansão de um Super-Herói? Tem até a fraqueza secreta. Shazam é um bom exemplo, ele é explicitamente uma amálgama de heróis antigos.

A dificuldade de aceitar é oriunda de estarmos vivendo a ascensão desses personagens de cultura pop ao rol das lendas. Falta distanciamento, mas há dois exemplos bem legais aonde podemos ver cultura e mitologia se formando, em tempo real.

Em Coco, o maravilhoso filme da Pixar de 2017, quando Miguel chega no pós-vida, ele reconhece um grupo de criaturas fantásticas, parecidos com pokemons psicodélicos. Ele os reconhece como Alebrijes, “criaturas espirituais que guiam os mortos em sua jornada”.

Alebrijes existem de verdade (tecnicamente).

A percepção geral é que são criaturas milenares, vindas talvez das lendas astecas, permanecendo vivas no imaginário popular mesmo depois da cristianização do México, mas os Alebrijes são bem mais novos, e tem sua origem muito bem documentada.

Eles surgiram em 1936, por obra de Pedro Linares, este sujeito aqui:

Pedro era um artista popular, ou mais precisamente um artesão, especializado em criar estátuas de papel-machê de Judas e outras figuras folclóricas. Um dia ele apareceu com uma série de animais fantásticos, quimeras multicoloridas que ele chamava de Alebrijes.

Pouco tempo depois um Merchant descobriu o trabalho de Pedro, começou a expor os alebrijes em sua galeria, e ele caiu no gosto da intelectualidade da época, até Frida Khalo comprou vários. Aí, como todo bom artista ele inventou uma história pra justificar sua arte.

Diz Pedro que um dia teve uma febre muito alta, e sonhou que estava em uma floresta repleta de animais fantásticos e coloridos que repetiam a palavra “Alebrije”. Quando acordou ele correu para esculpir os bichos que tinha visto.

Passaram-se os anos, Alebrijes começaram a ser copiados por outros artistas, se tornaram cobiçados por turistas e hoje há toda uma indústria comercializando as estátuas, bem como um grupo de acadêmicos desesperados para “demonstrar” que os Alebrijes possuem uma origem bem mais antiga. Alguns defendem que eles são Naguals, mas não funciona.

Alebrijes são amálgamas de bichos reais ou imaginários (incluindo dragões curiosamente chineses) mordidos por um Romero Britto radioativo. Naguals são bruxos metamorfos que fizeram um pacto com o demônio para se transformarem em animais. Também não são “espíritos”, muito menos guias no além-vida.

O que não importa, cada vez mais eles estão sendo vistos como “criaturas espirituais”, mesmo que seja uma percepção de segunda mão. Não é que as pessoas acreditem nisso, elas acreditam que outros acreditam, e no final acabamos com uma crença legítima, pois se todo mundo acredita, deve ser verdade, não?

A Versão Brazuca

Não é preciso ir muito longe, aqui mesmo no Patropi temos um exemplo de mitologia fabricada, as boas e velhas… carrancas.

O uso de figuras esculpidas na proa dos navios não é novo. Desde a antiguidade são usadas, como decoração, proteção, prestígio. Algumas são gloriosas e épicas, como a do HMS Victory:

Outras eram eminentemente funcionais, como as trirremes gregas:

A figura de proa era praticamente submersa, tinha um bico de bronze e servia para furar o casco dos inimigos.

Em outros casos, a figura de proa é mais politicamente incorreta hoje em dia, como a do HMS Madagascar:

Essas esculturas foram saindo de moda, e fora uso ocasional, ninguém mais pendurava nada nos barcos, até que no final do Século XIX, começaram a aparecer em um lugar inusitado: Ao longo do Rio São Francisco, no Brasil.

Elas começaram a ser usadas entre 1875 e 1880. Eram peças decorativas que diferem bastante das carrancas “tradicionais”:

A moda servia para diferenciar as embarcações, era prestígio ser o dono da carranca mais bonita e comentada, mas a complexidade se resumia a isso, e no máximo metade dos barcos no Velho Chico usavam carrancas.

Eis que um tal de Marcel Gautherot resolve fazer uma expedição fotográfica, registra os barcos, as carrancas, e elas caem no imaginário popular. Logo pessoas começam a querer comprar carrancas, artesãos começam a produzir versões para vender para turistas e comerciantes, e eles querem saber a história por trás das imagens.

“Eles usam porque é bonito” não é suficiente, então surgem histórias de carrancas usadas para proteger os barcos espantando jacarés, depois ela se torna uma espécie de talismã contra os espíritos do rio, e há até uma história de que a carranca geme três vezes (tipo a Murta que Geme) caso o barco esteja pra afundar.

O uso de carrancas em barcos foi saindo de moda, mas os artistas se adaptaram, criaram versões menores, mais carregáveis pelos turistas, e junto foi acrescentada à Mitologia que carrancas trazem boa sorte, mesmo longe do São Francisco.

Agora a melhor parte: Você já deve ter reparado que as carrancas originais são bem diferentes das tradicionais de hoje em dia. Isso tem culpa e data certa: Em 1971 um artesão chamado Mestre Bitinho, de Petrolina foi ao cinema e assistiu… A Fuga de King Kong, um daqueles filmes de monstro japoneses:

No filme o nobre símio enfrenta seu nêmesis, o Mecha Kong!

Mestre Bitinho ficou impressionado, e resolveu fazer uma carranca macaca, baseada no Mecha Kong. Isso mesmo crianças, pra tudo que chilica com “apropriação cultural”, uma das mais clássicas peças da arte folclórica brasileira é inspirada num filme de monstro japonês.

Depois disso ele fez a carranca vampira, que é o modelo mais popular até hoje.

Isso obviamente não vende carranca, então todo dono de banquinha de beira de estrada no Nordeste tem uma história pronta sobre como aquela carranca é legítima, protetora, super-tradicional e -a melhor parte- fruto de “tradições indígenas”, mesmo que os índios brasileiros nunca tenham construído embarcações de grande porte muito menos desenvolvido escultura em madeira, técnica que exige ferramentas de metal, e eles ainda estavam na idade da pedra.

Sim, isso mesmo, uma carranca da Princesa Leia.

Serem baseadas em filmes ou se adaptarem à cultura contemporânea não torna as carrancas arte menor. Pelo contrário, é a beleza da transformação e evolução, sem esse sincretismo de idéias elas teriam desaparecido na virada do Século, quando os navios a vapor começaram a roubar espaço dos barcos menores.

O importante é entender que elas podem ser apreciadas por sua simples existência, não é preciso toda uma explicação mística para isso. E sim, eu sei que é uma luta perdida, afinal, quem não gosta de uma boa historinha?

Fontes:

  1. CARRANCA VAMPIRA: A VITÓRIA DA ESTÉTICA MERCADOLÓGICA – Luiz Severino da Silva Jr. – UNICAMP
  2. Bitinho – Portal do Artesanato
  3. KING KONG JAPONÊS DEU ORIGEM ÀS CARRANCAS DO SÃO FRANCISCO – Aventuras na História
  4. Carrancas do São Francisco – História de Alagoas
  5. Por Uma Mitologia das Carrancas do Vale do São Francisco – Jairo Nogueira Luna – UPE/FFPG
  6. Everything you need to know about Mexican “Alebrijes” – El Universal
  7. Opará – Patrícia Pacini – Matrix Editora, Jun 9, 2017



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