“Aeronave desconhecida, aqui é um navio de guerra dos Estados Unidos, na direção 78 graus, identifique-se”.
No CIC – Centro de Informações de Combate do USS Stark, ninguém respirava. O avião desconhecido vinha em direção ao navio, e logo seu radar de tiro era captado. Imediatamente após, um míssil Exocet foi disparado a 35Km de distância, depois um segundo a 24Km.
O Exocet era um velho conhecido, tendo conseguido importantes vitórias para os argentinos na guerra das Falklands. Uma de suas vítimas, o Destroyer britânico HMS Sheffield, de 4800 toneladas.
O USS Perry era uma fragata, com 4200 toneladas, fragatas são as menores unidades navais de uma frota, um Exocet já seria complicado. Dois, morte certa.
Mais tarde descobriu-se que o avião desconhecido era um Dassault iraquiano codinome Suzanna, um jato executivo adaptado para missões de combate, e em teoria Iraque e EUA seriam aliados, mas isso não passava pela cabeça da tripulação do USS Stark.
Explodindo com um intervalo de 30 segundos um do outro, os dois AM39 Exocet, cada um com uma ogiva de 165 kg de alto-explosivo causaram um inferno de fogo no USS Stark. No total, 37 marinheiros morreram, a maioria com a explosão inicial, mas isso não impediu a turma de controle de danos de fazer o impossível, enfrentando o fogo enquanto confiavam cegamente, com a mais pura fé, que o Stark agüentaria, que seu projeto era robusto e valente, mesmo diante de chances impossíveis.
A vida do Stark e sua tripulação estava agora nas mãos de uma garotinha negra de 7 anos, que em 1942 ficou fascinada com um mini-submarino, alemão capturado na costa das Carolinas, que estava em exposição em Little Rock, Arkansas.
Raye Jean Jordan era jovem demais para saber seu lugar no mundo no Sul dos EUA na década de 1940, então, fascinada com todos os mostradores, alavancas, válvulas e controles, ela perguntou ao homem que tomava conta da exposição o que alguém teria que fazer para aprender a mexer com aquilo tudo.
“Ah”- Respondeu o homem – “Você tem que ser um engenheiro, mas você não precisa se preocupar com isso”.
A mãe de Raye explicou para ela os fatos da vida: “Você é negra, é mulher e vive em um Estado onde a educação é segregada, mas se você estudar, conseguirá tudo que quiser”.
Na escola, Raye era alvo de zombarias dos próprios colegas, que achavam sem propósito uma menina negra querer ser engenheira, mas Irma Holiday, sua professora do 8º ano do Fundamental, a acolheu, incentivando seu interesse em Ciência e Matemática.
Quando chegou a hora de ir pra faculdade, a Realidade mais uma vez não ajudou. A Escola de Engenharia da Universidade do Arkansas não aceitava mulheres negras. Raye teve que se contentar com um curso de Administração, na Faculdade Agrícola, Mecânica e Normal do Arkansas.
Depois de formada, em 1956, ela arrumou um emprego na Marinha, em Washington. Como datilógrafa. Só que Raye não era acomodada. Ela trabalhava com engenheiros de Harvard e Yale, com gente que havia participado do Projeto Manhattan, e mais importante, ela trabalhava ao lado de um UNIVAC I, o primeiro computador digital comercial, um trambolho com mais de 5000 válvulas, que DEFINITIVAMENTE não rodava Crysis.
Raye observava o trabalho dos operadores do computador, e vivia fazendo perguntas. O que era perfeito, engenheiros ADORAM falar sobre seu trabalho. Logo Raye tinha uma imensa familiaridade com o UNIVAC, mas ninguém sonhava em deixá-la encostar no bicho.
Até que um dia todos os operadores ficaram doentes. Raye chegou, o UNIVAC estava parado, os Jobs se acumulando. Ela arregaçou as mangas, e começou a mexer no monstro. Alguém passou, viu, a agarrou “você não pode mexer nisso, não é uma engenheira!”.
A gerência foi chamada, e Raye teve a oportunidade de explicar em detalhes o que estava fazendo. Ela acabou ganhando autorização de acesso ao UNIVAC, e depois do expediente freqüentava um curso de programação.
Depois de um ano como operadora informal, ela pediu uma promoção. O chefe de Raye, que não era uma boa pessoa, disse que ela teria que pegar o turno da noite. Ela topou, mesmo sem transporte público disponível.
Ela comprou um carro usado, pediu para o vendedor entregar em seu endereço. Raye aprendeu a dirigir sozinha, saindo nas madrugadas para praticar. Com o carro dominado, ela aceitou a transferência de turno, eventualmente ganhou a promoção e voltou pra um horário decente.
Aí o chefe tenteou sabotá-la.
Ele deu a Raye um projeto que por anos estava empacado, era considerado impossível pelos programadores da Marinha: Criar um sistema de computador para projetar um navio, o que chamamos hoje de CAD/CAM – Computer-aided design (CAD) e Computer-aided manufacturing (CAM).
O projeto deveria levar seis meses. Raye disse que precisaria desmontar o UNIVAC e reconfigurar um monte de conexões, para que seu software pudesse rodar. O Chefe insistiu que o trabalho deveria ser feito à noite, mas Raye não poderia ficar sozinha. Ah, e sem verba para hora-extra de outros funcionários.
Ela cumpriu a ordem, levando a mãe e o filho de 3 anos para ajudarem. O Chefe Malvado acabou cedendo e deu uma pequena equipe para Raye, que cumpriu o prazo e fez o software funcionar, o que foi uma surpresa para todos os envolvidos, menos Raye.
A notícia chegou até a Casa Branca, Richard Nixon estava em um programa de ampliação da Marinha dos EUA, precisavam projetar e construir mais navios em menos tempo. Nixon pediu então um projeto preliminar de um navio, em dois meses.
O chefe de Raye recebeu o pedido, e decidido a provar que era bobagem usar computadores para esse tipo de trabalho, repassou para ela as especificações do navio que deveria ser projetado, com o prazo de um mês.
O que ele não sabia, pois não assistia Jornada nas Estrelas (isso foi em 1970) é que um bom engenheiro sempre multiplica por 4 suas estimativas, e Raye era uma excelente engenheira. Seus softwares estavam azeitados, configurados, updates em dia, e sua equipe era excelente.
Todos os parâmetros introduzidos, foi dado o comando para mastigar os dados e produzir um projeto básico de um navio. O trabalho foi concluído em 18 horas e 56 minutos.
A Marinha ficou de queixo caído, a Casa Branca quase não acreditava, e o chefe de Raye dizia que sempre achou uma ótima idéia usar computadores para projetar navios.
Raye foi imediatamente reconhecida, e em 1972 recebeu o Meritorious Civilian Service Award, um dos mais importantes prêmios da Marinha dos EUA dado a civis.
Por causa disso ela foi ameaçada de morte, um sujeito recomendou que ela não aceitasse o prêmio, pois ele não havia sido dado antes a uma mulher branca. Raye mandou o sujeito pastar.
Raye atingiu o equivalente civil a Capitão, sendo nomeada Diretora de Programa para o Naval Sea Systems Command (NAVSEA), supervisionando o desenvolvimento de sistemas e projeto de navios usando computadores. Ela trabalhou em inúmeros projetos, incluindo o porta-aviões nuclear classe Nimitz Eisenhower e o submarino nuclear Seawolf.
Ela sempre esteve ciente da questão racial e do preconceito por ser mulher. Era comum alguém entrar em uma sala e pedir um café, só para descobrir que estava falando com a Chefa das Chefas, a Pica das Galáxias do Departamento.
Mesmo assim ela nunca usou isso como muleta. Ela sempre respondia “não” quando as pessoas lhe perguntavam se ela foi a primeira mulher ou a primeira mulher negra a conseguir o que fez no projeto de navios da Marinha.
“Não, eu fui a primeira pessoa e isso é importante”
Mulher, homem, reptiliano, preto, branco ou verde, antes de Raye NINGUÉM havia projetado um navio usando um computador. Ela foi a pioneira, sem categorias ou limitadores.
Raye Montague revolucionou a indústria naval, dando aos Estados Unidos o pioneirismo e a agilidade para produzir navios melhores, mais eficientes e com mais chance de trazer os rapazes (e também moças) de volta para casa.
Isso vale até para o primeiro modelo de navio projetado pelo sistema de Raye, aquele que levou 18 horas. Ela produziu as especificações para a classe Oliver Hazard Perry, o mais famoso deles, o USS Stark.
Graças a essas especificações, os dois Exocets não foram suficientes para liquidar o USS Stark. O comandante inundou os tanques de lastro de estibordo, mantendo os horríveis buracos dos mísseis acima da linha d’água, enquanto os marinheiros combatiam o fogo.
Com ajuda de dois outros navios, O USS Waddell e o USS Conyngham, o USS Stark conseguiu controlar a situação, e em 17 de maio de 1987 ele chegou ao porto em Bahrain, movido por seus próprios motores. Após extensos reparos, o USS Stark continuou servindo até ser descomissionado em 1999. Nada mal para 18 horas de trabalho.
Quanto a Raye, ela recebeu diversas homenagens e reconhecimento por parte da Marinha, e em 2017 participou do Good Morning America.
Raye Montague faleceu em 10 de outubro de 2018, aos 83 anos. Morreu sabendo que havia realizado o sonho daquela garotinha de 7 anos, morreu como uma respeitada engenheira naval, e acima de tudo, morreu sabendo que vários navios que ajudou a projetar ainda estavam na ativa, como o poderosíssimo USS Dwight D. Eisenhower. Que mais uma engenheira pode pedir?
Fontes:
- Hidden No More: Overnight Code Chronicles the Life of Raye Montague
- Real-Life ‘Hidden Figure’ Raye Montague Dies At 83
- Meet the woman who broke barriers as a hidden figure at the US Navy
- Raye Montague, the Navy’s ‘Hidden Figure’ Ship Designer, Dies at 83