Quem me lê no Twitter ou mesmo aqui en passant conclui duas coisas: Primeiro, que eu sou um babaca pedante por usar expressões como en passant. Segundo, que eu odeio jornalistas, o que está muito longe da verdade.
Eu incenso Jornalistas nos meus textos, gosto de lembrar que o Super-Homem é um Jornalista e considera seu trabalho na máquina de escrever tão importante quanto seus superpoderes. Bolas, eu já contei a história real de quando o Super-Homem e um Jornalista venceram a Ku Klux Klan.
Meu problema não é o jornalista, é o jornaleiro, o sujeito que está pouco se importando com o conteúdo, o que ele quer é vender jornal de qualquer jeito. Na banca é uma profissão honrada e invejável (quando criança por um tempo eu quis ser jornaleiro). Na redação, é uma desgraça, um aborto ético e moral.
Um Jornalista jamais deveria se preocupar com audiência, ou em ter que alterar seus títulos e chamadas para induzir erroneamente o leitor, como forma de aumentar seus cliques. Muito menos deveria esse jornalista se deixar afetar pelo ciclo de 24 horas de notícias, aonde é exigido que os sites publiquem muito e o tempo todo.
O pior de tudo é que em prol da tal “agilidade”, as redações abriram mão de profissionais como revisores, copidesques e editores, e os jornalistas abriram mão, bem… do jornalismo, virando jornaleiros.
Nos velhos tempos Roberto Marinho encheu a redação d’O Globo de comunistas, ele dizia que ajudavam a manter a objetividade, eram bem críticos nas notícias a favor do governo, e como eram visados, embasavam as notícias negativas aos militares com muitas fontes e dados. De vez em quando aparecia algum coronel ameaçando, mas Roberto Marinho dizia “nos meus comunistas ninguém mexe”.
Hoje, sem consequências, as redações estão cheias de ideologia, todo mundo virou seu próprio Pravda ou Fox News, se a notícia fecha com a Narrativa que o sujeito quer promover, ele publica sem pensar duas vezes.
Claro, às vezes é por pura ganância financeira atrás de cliques.
No caso de hoje, eu diria que foi um pouco coluna A, um pouco coluna B, ainda mais uma notícia que envolve a coluna do meio.
A notícia é suculenta: “Homofóbico ejacula durante exame de próstata e atira no médico”. Em um tempo aonde não ser da Turma do Alfabeto já coloca o sujeito na mira de todas as patrulhas, um caso desses é perfeito.
Que caso melhor exemplifica a homofobia do homem branco cis hétero? O horror da penetração na mente conservadora, a reação involuntária gerando todo tipo de dúvida, o horror da possibilidade de ser gay fazendo o homem se tornar um monstro violento e atirar no médico…
Segundo a matéria, a namorada do cara teria dito:
“Ele odiava homossexuais. Eu sabia disso, mas atirar? Eu nunca imaginei que ele pudesse ir tão longe”
E o melhor, a declaração do tal médico:
“Eu entendo que Milo ficou chocado com o que aconteceu com ele, um orgasmo significava que algo sexual tinha acontecido entre nós. Com isso, ele se tornou muito agressivo.
Ele me mandou pedir desculpas, e dizer ‘sem viadagem’, eu nem sabia o que isso significava”
OK, ignoremos que o médico não entenda o que quer dizer “sem viadagem”.
A matéria termina dizendo que o sujeito está desaparecido, o médico levou dois tiros mas sobreviveu.
A história foi replicada em centenas e centenas de site, uma simples busca no Google mostra como ela vem sendo recontada. Só que há um problema: NENHUM dos sites acrescente nada, NADA. São as mesmas informações, às vezes menos, nunca mais.
E todas apontam para uma única fonte, um tal Bokdaily.com, um site criado menos de um mês atrás, e hospedado no Bluehost, o excelente serviço que eu uso, mas que exceto nos planos mais caros não é adequado a um site profissional de grande porte.
Depois de todos esses anos nesta indústria vital, eu aprendi a farejar de longe coisas suspeitas, e o tal site fede a fake News. É cheio de histórias “chocantes” e cheias de lições de moral, como esta matéria, “Louisiana man drop dead moments after calling woman a ‘Voodoo nigga bitch’”.
Uma busca rápida na imagem e a foto usada é de um tiroteio em Nova Orleans, em 2018.
Esse é o típico modus operandi da turma das fake News, eles pegam imagens fora de contexto sabendo que basicamente ninguém vai se dar ao trabalho de pesquisar, e, queridos jornaleiros, basta clicar com o botão direito e mandar buscar no Google por aquela imagem.
O caso do cara da dedada, há vários indícios óbvios de Fake News: Primeiro e principal, a notícia não aparece em NENHUM site jornalístico. NENHUM. Não há mais nenhuma fonte independente que não aponte pro BokDaily.
Os nomes. “Milo Johanson” o atirador vítima de fio-terra não-solicitado não existe no Google, exceto em matérias sobre o tal ataque. A primeira ocorrência do nome sem ser na notícia é um blog de um garoto sueco. O tal “Dr. Herald Smith Jr”? Também não existe. Não como médico na Flórida. OK, há um, mas está morto, e dedada de morto não incomoda.
As imagens dos dois? O médico é estranhamente parecido com Ion Chichu, Primeiro-Ministro de Moldova, mas com mais cabelo. Isso reforça uma suspeita levantada pelo E-Farsas, que também estou este caso. É provável que os rostos tenham sido gerados por inteligência artificial.
Como esses sites usam imagens reais como base para treinar seus algoritmos, e figuras públicas costumam ter boa quantidade de imagens de alta qualidade, é possível que haja uma tendência a gerar rostos mais conhecidos.
No Generated Photos por exemplo, é possível escolher um monte de parâmetros, e gerar um monte de japinhas infelizmente inexistentes.
O que torna as fotos do BokDaily especialmente suspeitas é que elas não existem em nenhum outro lugar, nem há outras fotos da mesma pessoa, e o Google é ótimo em achar rostos parecidos. Como assim o sujeito não tem NENHUMA presença em internet e redes sociais, em 2020? Improvável. Os dois? Impossível.
No final temos uma CARALHADA (perdoe meu francês) de sites que se dizem defensores da verdade e da objetividade, inclusive grandes portais republicando a história, sem fazer um milímetro de checagem de fatos. Isso é irresponsável, isso demonstra que a Imprensa passa por uma crise séria.
Se um caso simples de investigar como esse (não há NENHUMA mensagem pedindo para confirmar o caso, nas mentions do Twitter do Escritório do Xerife em Jacksonville) é repassado como verdade, quantas mentiras a mídia publica todo dia, sem que a gente perceba?
Como dá pra confiar em uma mídia que não está nem aí? EU não confio mais. Prefiro confiar desconfiando de uma meia-dúzia de Jornalistas que acompanho nas redes sociais, e que geralmente complementam suas afirmações com fontes sérias. Já portais? Grandes jornais? TV? Desculpe, mas se eles não respeitam nem o cu alheio, atrás de dinheiro e cliques, não merecem seus R$20,00.
Eu mereço ;)