A estranha histeria sobre cantoras mortas e os Guardiões da Ética Publicitária

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A Internet, principalmente o Reddit, está sofrendo contínuos ataques de pelanca por causa de aplicações como o Midjourney e o Stabble Diffusion, por gerarem arte sem a necessidade de artistas.

Por enquanto o grupo mais afetado é o povo de cabelo colorido do Tumblr, que cobra entre US$5 e US$15 para desenhar waifus, japinhas voluptuosas e pneumáticas, como diriam em Admirável Mundo Novo. Mesmo na minha arcaica GeForce 1050ti, lançada no longínquo ano de 2016, levo pouco mais de um minuto para criar uma japinha genérica dessas:

No mundo real, há um imenso entusiasmo com imagens criadas via IA, seu uso é infinito, de story boards a pré-visualização, diretores não precisam mais encomendar ilustrações e esperar vários dias até receber de volta o resultado, e iniciar um sem-fim ciclo de alterações.

Hoje, se você quiser ter a idéia de um ator como um personagem, basta pedir ou descrever e a IA te atende em segundos. Como nesta imagem usando uma atriz escolhida de forma completamente aleatória:

Também há usos de IA para síntese e clonagem de voz, que alguns dizem já estar sendo usada para o mal, em golpes via celular, mas tenho minhas dúvidas. Outras técnicas, como os Deep Fakes, já existem tem alguns anos, e só não eram muito difundidas por serem bem trabalhosas, mas já há uma boa quantidade de vídeos com o Emma Watson e a Jennifer Lawrence praticando atos altamente libidinosos.

A discussão no momento se concentra no comercial “Gerações”, da ALMAPBBDO para a Volswagem.

Criado por Francis Allan e Gustavo Tasselli, o filme mostra a cantora Maria Rita dirigindo uma Kombi elétrica de última geração, quando é interceptada por uma Kombi clássica dos anos 60, dirigida por sua mãe, Elis Regina.

As duas cantam em conjunto “Como Nossos Pais”, de Belchior, tentando passar a idéia da união das gerações. É um filme muito bonito, mas tem seus problemas.

Desses, o único problema real é que Como Nossos Pais não é uma música otimista, fala de uma geração rebelde e progressista que abandonou seus sonhos, viu a realidade da vida acabar com seus ideais revolucionários.

“Minha dor é perceber / Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos / Ainda somos os mesmos
E vivemos / Como os nossos pais”

Ou:

“Hoje eu sei que quem me deu a idéia
De uma nova consciência e juventude
Tá em casa Guardado por deus
Contando vil metal”

Mas, sabe-se lá porquê, decidiram que a música era positiva. Tipo o público americano, até hoje encantado pelo refrão de Born in the USA de Bruce Springsteen, sem nunca entenderem que a letra fala de um veterano no Vietnã que foi para a guerra sem saber o que estava acontecendo, e voltou para ser hostilizado e desprezado pelos seus compatriotas. Yay América!

O problema que a Internet está reclamando não é esse, claro, é o uso de IA (na realidade DeepFake) para criar a imagem da Elis Regina no comercial.

A tecnologia de Deep Fake começa com um vídeo com alguém com um corpo e constituição facial semelhantes à pessoa que desejamos clonar. Essa dublê interpreta a cena. Em seguida, o filme é convertido em uma seqüência de frames. Um sistema usando redes neurais que analisa os rostos no vídeo e os substitui pelo rosto de um modelo treinado anteriormente, com centenas de imagens de uma pessoa específica.

Neste exemplo aqui, NÃO é o Tom Cruise no vídeo. É um Deep Fake, de dois anos atrás.

O povo reclamão considerou heresia “ressuscitar” Elis para um comercial de carro, e a reação, claro, foi ponderada e racional. Nah, tinha gente pedindo boicote, outros correram para “revelar” a associação da Volkswagen com o nazismo (caso que eu contei aqui neste excelente artigo), como se as empresas alemãs da época tivessem alguma alternativa.

Estão levantando todo tipo de questionamento ético e de direito de imagem, curiosamente em nenhum momento pararam para perguntar o quê Maria Rita, a FILHA E HERDEIRA de Elis Regina acha, mas como ela co-estrela o comercial, provavelmente a resposta não seria o que os reclamões querem ouvir.

O mais curioso é que não é a primeira vez que isso acontece. Em 1991 a Brahma lançou um comercial com Tom Jobim e Vinicius de Moraes, cantando Eu Sei Que Vou Te Amar, e mesmo com a tecnologia de barro fofo e pedra lascada da época, criaram a ilusão de que Vinícius, já falecido, dividia palco com o ex-parceiro.

Bem mais recentemente, tivemos a recriação digital de Peter Cushing como Grand Moff Tarkin, em Rogue One, e Carrie Fisher como Leia, no mesmo filme. Há casos não-planejados, como Richard Harris, que morreu antes de terminar Gladiador e teve que ser substituído por um dublê, ou Brando Lee, morto na metade da produção de O Corvo, e obrigando os produtores a cortar um dobrado para terminar o filme.

O pai de Brandon, Bruce Lee, também foi “ressuscitado” em um comercial meio bizarro do Nokia N96. Sim, aquele vídeo que todo mundo passa do Bruce Lee jogando ping-pong com nunchakus é fake.

Em 2005 a Volkswagen, que pelo visto gosta mais de ressuscitar gente morta do que Jesus, lançou o também lindo comercial do Golf GTI com Gene Kelly, onde usando a tecnologia da época, inserem digitalmente o rosto do ator combinando com dançarinos de estilos mais modernos, com o mote “Clássico, atualizado”:

Em 2013 a Framestore, mesma casa de efeitos que fez Gravity, criou os efeitos visuais do comercial para o chocolate Galaxy. No filme, uma jovem Audrey Hepburn vive uma cena romântica na Riviera italiana.

No mesmo ano Bruce Lee, outro que adora ser ressuscitado, talvez devesse ser contatado pela VW, “estrelou” um comercial para o Johnny Walker, onde repete seu clássico monólogo “seja água”.

T

odos esses filmes, e vários outros, despertaram as mesmas cansadas polêmicas sobre direito de imagem. É mais que estabelecido que, fora haja algum contrato com estúdio, ou decisão escrita deixada pelo morto, os direitos de imagem são da família.

Maria Rita autorizou, mediante polpudo e merecido pagamento, o uso da imagem da mãe. O espólio do Bruce Lee, que processa a torto e direito, foi muito bem remunerado por todas às vezes em que ele foi usado em comerciais.

A questão se isso é ético, mesmo com autorização, é outra bobagem. Então eu não posso escrever um conto onde meu personagem viaja no tempo e encontra Winston Churchill, Stephen Hawking, George Michael?

E se eu fizer uma história em quadrinhos, ou usar IA para produzir ilustrações hiper-realistas? Ou só a imagem em movimento é antiética?

E qual a moratória, qual o período de luto? Não posso fazer um vídeo com uma versão digital da Elis Regina, que morreu em 1982, 41 anos atrás. OK, e do Max Fleischer, morto em 1972, já pode? Ou não há limite e se eu quiser criar um vídeo de Júlio César, ainda será imoral e desrespeitoso com os falecidos?

Se eu quiser criar uma fotonovela (pergunte a seus avós) contando a história de Che Guevara, o Revolucionário de Tutu, é errado usar IA para criar as imagens, mas deixa de ser ofensivo se eu contratar um sósia e tirar fotos?

Como isso se aplica à dramaturgia? Eu sei que a minha versão digital não é a pessoa de verdade, então esse argumento não funciona para justificar o uso de atores. Sir Ben Kingsley quase literalmente encarnou Gandhi no filme do mesmo nome, uma performance de uma vida, esquecida pela galerinha que só o conhece pelo despirocado Trevor Slattery dos filmes da Marvel.

Usar um ator é mais ético do que IA? Para algumas pessoas, não.

Kingsley foi mais uma vítima da turma lacradora. Há um grupo no Twitter (sempre lá) que o quer cancelar acusando de “brownface”, ele seria um “branco” usando maquiagem para fazer o papel de um indiano.

Ninguém conte para eles que seu nome de batismo é Krishna Pandit Bhanji, sua mãe é inglesa e o pai indiano.

O desespero todo dessa vez no caso Elis Regina envolve “IA”, que nenhum dos histéricos consegue entender ou definir, mas parecem achar que é uma tecnologia mágica que ressuscita gente digitalmente com o apertar de um botão.

Essas pessoas não entendem que tudo é um remix, grandes artistas, criadores e personalidades não deixam de fazer parte do Zeitgeist quando morrem. IA ou não, os mortos são serão esquecidos.

Nota:

“Zeitgeist” é um termo alemão usado para descrever o espírito ou a mentalidade característica de uma época, ou período específico da história. Literalmente, “Zeitgeist” é composto pelas palavras “Zeit”, que significa “tempo”, e “Geist”, que significa “espírito”. O termo é frequentemente utilizado para refletir as tendências culturais, sociais, políticas e artísticas proeminentes em determinado momento histórico. O Zeitgeist captura o clima geral de pensamento, valores e crenças que influenciam uma sociedade em um determinado período. É um termo bem comum entre gente pretensiosa que quer falar difícil e o final usa o ChatGPT para gerar suas explicações.

E não, isso não é uma conspiração capitalista. Todo mundo acaba consumindo conteúdo envolvendo gente morta, inclusive o povo gratiluz de esquerda que está criticando o comercial da Elis.

Ou você acha que todas as lojas que vendem camisetas do Che têm autorização para usar a imagem dele?

Ou todas as feministas empoderadas e atrizes cheias de consciência social, que enchem suas casas com imagens de Marilyn Monroe, será que elas compram seus produtos, encomendam seus quadros de gente com autorização para usar a imagem, e repassar royalties para a família?

Um monte de gente, pagando de médiuns de ocasião, fica falando “Elis não autorizaria esse uso”, ou tal ator não faria essa cena. Em geral é gente sem nenhum contato pessoal com o falecido, e a opinião se baseia no que a pessoa QUER que o morto faça. Se eu fizer um vídeo ressuscitando Getúlio Vargas onde ele defende aquele idiota que disputou o 2º Turno ano passado, os fãs dele adorarão, enquanto os opositores desfilarão questionamentos éticos sobre o uso da imagem de pessoas falecidas.

Não é sobre quem fala, sobre como fala. Não tem a ver com direitos de imagens, direitos dos falecidos. No fundo é tudo um desejo de controlar a Mensagem, eles querem controlar o que todo mundo fala, vivo ou morto.



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