Só o careca se dá bem — ou: A estranha moralidade de House of Cards

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[TRIGGER WARNING: Contém toneladas de spoilers de House of Cards]

A dramaturgia pode instigar, provocar, questionar, temos séries ousadas, filmes com temas polêmicos não são privilégio dos tempos modernos, por mais que os fãs de Sense8 achem que inventaram a roda, como todo mimillenial. No excelente O Vento Será Sua Herança, de 1960 é dramatizado o caso do Professor John Thomas Scopes, que em 1925 foi julgado e condenado por ensinar a Teoria da Evolução a seus alunos.

No clássico O Sol É Para Todos, lançado em 1962 baseado no magistral e homônimo livro de Harper Lee, publicado em 1960, um jovem negro é acusado de estupro por uma menina branca, e é feita toda uma discussão sobre racismo e Justiça, melhor do que qualquer coisa cuspida pelos “movimentos” nos últimos 20 anos. Acumulados.

Ambas as obras foram muito bem-sucedidas, pois provocaram sem contrariar a moralidade básica de seus espectadores, e isso acontece até hoje, com toda obra principalmente as abertas, como séries e novelas. O espectador é soberano e ele decide, sem perceber, o rumo da história.

Como? Fácil, votando com os olhos. Os produtores acompanham constantemente a audiência, mas com extrema granularidade. Fazem pesquisas para saber quais episódios, quais cenas, quais personagens funcionam melhor com o público. De novo, isso não é recente. O Dr Smith originalmente era o vilão de Perdidos no Espaço, mas caiu nas graças do público. Isso tem até nome, Breakout Character.

Quer saber quem começou como ponta, caiu nas graças do público e acabou virando protagonista? Pernalonga. Zé Carioca. Popeye, Pica-Pau. Donald. Patolino. Jack Sparrow, Castiel de Supernatural, Sheldon Cooper (o personagem principal deveria ser o Leonard), Agente Coulson, Felicity de Arrow, e o Mário (vai, pergunta). O foco era o gorila.

Em House of Cards Frank Underwood era o inquestionável centro das atenções. Todo o resto era coadjuvante. Amoral, cruel, maquiavélico, ele fazia o que queria, com quem queria. Logo no começo ele usa a jovem e ambiciosa e apetitosa jornalista Zoe Barnes para espalhar desinformação. Ela recebe fofocas de bastidores, e em troca serve de brinquedinho sexual para Frank.

LONGE de mim dizer que dispensaria a totosa da Kate Mara, mas Frank Underwood não tem motivos para se arriscar com uma repórter que no máximo seria 5/10, ou 3/10 na escala Escorts do 1o Escalão de Washington. A relação de Frank com Zoe não tem a ver com sexo, tem a ver com poder. Ele quer mostrar quem manda, e a coage em um dos dá ou desce mais cruéis que já vi na TV.

Claire Underwood sabe das escapadas do Frank e não liga, o casamento deles funciona bem. Exceto que na cabeça do público as coisas não se encaixam.

A personagem de Robin Wright foi caindo nas graças do público, ela reatou um caso antigo com um pintor, e o público aceitou a traição, ficou como uma espécie de vingança, mas tudo que Frank fazia que afetava Claire, era mal-visto. Logo o lado bissexual do personagem acabou fortalecido, era a única forma de não desagradar ao público. Aparentemente Frank podia transar, se fosse com um sujeito. Não é traição se for com outro homem. Bom saber. Não, péra.

Claire chegou ao ponto de se enrabichar com um escritor (que mulher sem critérios!) e levar o cara para a Casa Branca, ela e Frank vivendo em separação de corpos extraoficial, mas mesmo assim Frank não pode tocar outra mulher, ou o público se volta contra ele.

Enquanto isso Doug Stamper, o Primeiro-Capachão leva uma vida miserável, alcoólatra não-funcional (amadores) e passa o rodo em todo rabo de saia que aparece. Claro, quando ele se envolve a sério a mulher é mais quebrada por dentro do que ele, e o sexo de Doug não tem paixão nenhuma, é uma mistura de raiva e fuga. Ele chegou a ter um caso com a viúva de um sujeito que morreu por ter sido passado para trás na fila de transplantes, uma manobra de Doug para salvar Frank Underwood.

Doug já matou, mentiu, enganou e continua nas graças do público, foi inclusive “ressuscitado” em um final de temporada. O motivo? Não há nenhuma ligação emocional entre o público e as mulheres de Doug. A moralidade central das pessoas não é ameaçada, ele é um atentado em um mercado em Kotobi. Mesmo que diz “ah que pena” não tem qualquer ligação emocional, e se diz que tem está mentindo. (Sudão do Sul, antes que você pergunte)

Falam que Frank Underwood é totalmente amoral, mas isso é uma ilusão. Não existe personagem de teledramaturgia 100% amoral. O limite dele é a elasticidade da moral do público. O segredo do sucesso, o segredo para se destacar é ultrapassar o ponto de catarse. Eu explico: Catarse é como em zumbis onde os personagens agem em um mundo sem regras, como nós gostaríamos de agir, é gostoso fantasiar como seria brandir uma espada enfrentando mortos-vivos.

Se você passar muito desse ponto, chega a um espelho negro onde é refletido tudo de realmente ruim que há dentro de nós, isso incomoda, a percepção de que nós, coletivamente como espécie podemos ir tão fundo no abismo. Por isso filmes como Irreversível e Requiem for a Dream são tão perturbadores. Idealmente o personagem deve ficar aquém desse ponto.

Frank Underwood testa o tempo todo os limites da moralidade dos espectadores, mas é inteligente o bastante para perceber quando é hora de recuar. Seu limite é a Claire, resta saber se os roteiristas conseguirão manter Frank relevante, em um mundo onde ela matou o amante e continua sendo adorada pelo público. Qual será o limite da moralidade dos fãs de Claire Underwood? Não faço idéia, se soubesse eu estaria escrevendo House of Cards, e pagando gin-tônicas para vocês, e não o contrário.



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